São Benedito: santidade negra, fé popular e a cozinha como lugar de glória

São Benedito: santidade negra, fé popular e a cozinha como lugar de glória

Celebrar São Benedito, hoje, é reafirmar uma eclesiologia da inclusão e da diversidade. É reconhecer que o Espírito sopra nas culturas, nas periferias e nas vozes que foram silenciadas.

Frei Ademilson Salvino dos Santos, OFM

A figura de São Benedito, o Mouro, ocupa um lugar singular na história da espiritualidade cristã e na religiosidade popular, especialmente entre as comunidades afrodescendentes das Américas. Nascido por volta de 1524 em São Fratello, na Sicília, Benedito Manasseri foi filho de Cristóvão Manasseri e Diana Larcan, africanos escravizados trazidos provavelmente da Etiópia. Embora tenha nascido livre, herdou da condição de seus pais o peso simbólico da escravidão e a experiência concreta da marginalização racial e social. Ainda jovem, trabalhou como pastor e lavrador, ofício que lhe aproximou da terra e dos pobres, elementos que, mais tarde, se tornariam centrais na sua espiritualidade. A simplicidade, a mansidão e a profunda piedade foram marcas reconhecidas por todos que conviveram com ele, e constituem as bases do seu itinerário de santidade.

Com cerca de dezoito anos, Benedito ingressou em uma comunidade de eremitas franciscanos conduzida por frei Jerônimo Lanza, um grupo de leigos penitentes que buscavam viver o Evangelho em oração, silêncio e pobreza. Durante duas décadas, Benedito dedicou-se à vida contemplativa, combinando o trabalho manual com uma intensa experiência de oração e penitência. Entretanto, o contexto eclesial do século XVI foi marcado pelas reformas internas que se seguiram ao Concílio de Trento (1545–1563). Muitas comunidades de eremitas, que viviam sem estrutura institucional rígida, foram suprimidas pela Igreja, a fim de concentrar a vida religiosa em ordens reconhecidas e regularizadas. Assim, por determinação papal, a comunidade à qual Benedito pertencia foi dissolvida. Essa extinção, contudo, não significou um rompimento com seu ideal evangélico, mas um novo chamado à vivência do mesmo carisma sob a Regra de São Francisco, agora no interior da Ordem dos Frades Menores.

Transferido para o Convento de Santa Maria de Jesus, em Palermo, Benedito encontrou ali o espaço propício para expressar a sua espiritualidade encarnada. Exerceu os ofícios mais simples e, por isso mesmo, mais evangélicos: foi cozinheiro, porteiro e sacristão. A cozinha, em particular, tornou-se o lugar da sua mística cotidiana. O serviço transformou-se em oração, e o alimento preparado tornou-se expressão de comunhão fraterna. Sem formação acadêmica, mas dotado de sabedoria espiritual notável, foi eleito guardião do convento em 1578 e, posteriormente, mestre dos noviços. Como observa Mendes da Luz (2024, p. 17), “Benedito encarna o ideal franciscano da minoridade: ser o menor, o servo de todos, aquele que manifesta Deus na simplicidade das mãos que servem”. Sua fama de santidade ultrapassou os muros do convento e espalhou-se entre o povo, que o reconheceu como intercessor, protetor e amigo dos pobres.

Após sua morte em 1589, a devoção a São Benedito se expandiu rapidamente. No século XVII, a Península Ibérica já contava com altares e confrarias dedicadas a ele, e a devoção atravessou o Atlântico com as comunidades negras escravizadas. No Brasil, sua presença se fez sentir desde o início da colonização, tornando-se símbolo da resistência espiritual e cultural das populações afrodescendentes. As irmandades de São Benedito, compostas majoritariamente por pessoas negras, surgiram como espaços de afirmação e solidariedade, onde se conjugavam fé, identidade e luta por dignidade. Conforme analisa Prandi (1997), as devoções afro-brasileiras se constituem “como expressões religiosas e culturais de resistência simbólica”, e São Benedito figura entre os santos que encarnam essa resistência no campo católico. As festas, congadas e moçambiques em sua honra misturam música, dança e oração, configurando uma teologia vivida, uma liturgia popular onde o sagrado e o cotidiano se abraçam.

A iconografia de São Benedito também revela muito de sua espiritualidade e da recepção popular de sua imagem. Ele é geralmente representado com o rosto negro, vestindo o hábito franciscano e trazendo o Menino Jesus nos braços. Essa representação tem raízes em um episódio da tradição devocional, segundo o qual o santo, enquanto trabalhava na cozinha, teria tido uma visão de Cristo Menino sobre a mesa onde preparava o alimento. A cena, que une o labor cotidiano ao mistério da encarnação, simboliza o encontro entre o divino e o humano nas realidades mais simples. Para a teologia popular, essa imagem traduz a presença amorosa de Deus na vida doméstica e no cuidado diário com os outros. Como escreve Clodovis Boff (1987, p. 42), “a experiência de Deus no povo não se dá nas alturas abstratas da razão, mas na concretude da vida e na materialidade dos gestos”. É nesse horizonte que São Benedito é compreendido como aquele que acolhe o Menino Deus, não em um palácio, mas na cozinha, lugar onde o amor se torna alimento.

A imagem do santo com o Menino Jesus também expressa um profundo simbolismo cristológico: o Cristo confiado aos braços do servo. O Menino nos braços do frade negro é o sinal de uma inversão evangélica, o pequeno se torna grande, e o marginalizado é portador da presença divina. O povo, ao ver essa imagem, encontra nela uma síntese de sua própria experiência: ser chamado a sustentar a fé mesmo na dor e na invisibilidade. A devoção doméstica a São Benedito, tão presente em oratórios populares, revela essa teologia silenciosa e viva, onde a santidade se torna familiar e próxima.

Conta a tradição que São Benedito, enquanto frade leigo em Palermo, era extremamente caridoso e jamais deixava os pobres saírem do convento de mãos vazias. Distribuía o que tinha, restos de pão, legumes e até porções da cozinha do convento. Certa vez, o guardião do convento, preocupado com o excesso de generosidade, ordenou-lhe que não desse mais alimento sem autorização. Benedito, porém, movido pela compaixão, continuou a socorrer os pobres que batiam à porta.

Um dia, foi surpreendido pelo guardião saindo com o avental cheio de pães escondidos sob o pano. Questionado sobre o que carregava, respondeu humildemente: “Levo flores para Nossa Senhora.” Quando o guardião, desconfiado, levantou o pano, não viu pães, mas flores brancas (em algumas versões, apareceu o Menino Jesus sobre o avental, sorrindo para Benedito).

Do ponto de vista teológico, o episódio expressa a mística franciscana da presença de Deus nas realidades simples: o Cristo que se revela no pobre e no pão partilhado. Na tradição popular, a história se uniu à visão mística do santo na cozinha, originando a imagem de São Benedito com o Menino Jesus nos braços, sinal de que a caridade cotidiana é lugar da encarnação e milagre do amor que se faz partilha.

Esse milagre é interpretado como sinal da presença real de Cristo na caridade do santo: os pães, transformados em flores ou no próprio Menino, revelam que servir aos pobres é servir ao próprio Cristo, conforme o Evangelho (“tive fome e me destes de comer…” Mt 25,35).

Por ser um dos poucos santos negros canonizados pela Igreja Católica, São Benedito assume papel profético em uma história eclesial marcada pela branquitude e pelo eurocentrismo. Sua santidade, enraizada na negritude e na pobreza, questiona as estruturas de poder e denuncia as formas de racismo ainda presentes nas relações sociais e religiosas. Frei Betto (2003, p. 88) afirma que “a santidade negra é teologia viva da libertação, é anúncio do Reino que se faz pão no fogão das periferias”. Essa dimensão libertadora e encarnada faz de São Benedito um símbolo de reconciliação entre fé e cultura, entre Igreja e povo, entre mística e serviço.

A espiritualidade de São Benedito é profundamente franciscana porque traduz o ideal da minoridade como forma de glória. Ele ensina que servir é a expressão mais autêntica do amor cristão. Sua vida demonstra que a santidade é possível no trabalho simples e nas relações humildes, sem necessidade de títulos ou poderes. Ao santificar o cotidiano, ele revela que a cozinha, o pátio e o serviço doméstico podem se tornar espaços teológicos, lugares onde a graça se manifesta. Para as comunidades negras e populares, ele representa a dignidade de quem resiste e crê, mesmo quando o mundo nega essa possibilidade. Como afirma Mendes da Luz (2024, p. 22), “São Benedito é o rosto visível de uma santidade que emerge da cozinha da história, onde Deus cozinha o pão da esperança com as mãos do povo pobre”.

Celebrar São Benedito, hoje, é reafirmar uma eclesiologia da inclusão e da diversidade. É reconhecer que o Espírito sopra nas culturas, nas periferias e nas vozes que foram silenciadas. Ele continua a inspirar a Igreja a ser casa aberta, mesa partilhada e espaço de reparação. Seu exemplo desafia-nos a reconstruir relações fraternas, a combater o racismo estrutural e a viver o Evangelho como serviço libertador. A santidade de Benedito é o lembrete de que a fé cristã, quando encarnada na cultura e sustentada pelo amor, transforma o mundo em cozinha do Reino, um espaço de comunhão onde todos e todas têm lugar à mesa.

Referências:

BETTO, Frei. O amor fecunda o universo: ecologia e espiritualidade. Petrópolis: Vozes, 2003.

BOFF, Clodovis. Teologia do povo: ensaios de teologia popular latino-americana. Petrópolis: Vozes, 1987.

LUZ, Alvaci Mendes da. São Benedito, o Mouro: quinhentos anos de devoção. Belo Horizonte: Revista Grande Sinal, v. 78, n. 2, 2024.

PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

RUBBO, Domingos. São Benedito: o santo negro da cozinha franciscana. São Paulo: Paulus, 2015.

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