Fraternidade e educação antirracista

Fraternidade e educação antirracista

Educação Antirracista é antes de tudo uma ação, uma abordagem educativa que vai além dos espaços das escolas e universidades na busca por coibir a disseminação de discursos racistas e preconceituosos.

Campanha da Fraternidade 2022

Fraternidade e Educação

Fala com sabedoria, ensina com amor (Pr 31,26)

Renieverton Telles de Oliveira[1]

Introdução       

A Campanha da Fraternidade 2022 nos convida à reflexão sobre a “Fraternidade e a Educação”, sob a iluminação do lema extraído do livro dos Provérbios: “Fala com sabedoria, ensina com amor”. Essa temática já foi refletida outras duas vezes em 1982 e 1998, todavia, vivenciamos um tempo marcado por um desmonte da educação e um fortalecimento de uma ignorância que não valoriza os saberes emancipatórios, a produção de conhecimento e a consciência crítica. 

Segundo Paulo Freire (2003), enquanto não superarmos a prática da educação como pura transferência de um conhecimento que somente descreve a realidade, bloquearemos a emergência da consciência crítica, reforçando assim o “analfabetismo” político. Temos de superar essa espécie de educação, se nossa opção é realmente revolucionária, por uma outra, em que conhecer e transformar a realidade são exigências recíprocas.

Em Paulo Freire, a abordagem da educação não é unilateral. Não há uma relação linear de poder, mas um processo dialético em que educador e educando estão imersos numa aventura de descoberta compartilhada. Por isso é [a educação] uma concepção revolucionária, comprometida com a libertação humana .

(GAYATO, 1989, p. 12)

Numa perspectiva fraterna/eclesial, o próprio Jesus se apresenta como aquele que educa numa narrativa linear e dialética ao se sentar com seus discípulos e ensiná-los (Mt 5,1). À luz da Palavra de Deus somos chamados a escutar, compreender, problematizar e transformar a realidade. Por isso a pedagogia de Jesus caminha na contramão dos movimentos que silenciam e oprimem as pessoas.

Entre tantos aspectos que envolvem a educação, este artigo tem por finalidade explicitar a importância da Fraternidade e uma Educação Antirracista, não obstante os clamores de todos e todas que foram vulnerabilizados por uma sociedade injusta, que marginaliza e destitui as pessoas de sua dignidade.

De acordo com a apresentação do manual da CF 2022, Educar é um ato eminentemente humano e, também, uma ação divina. Deus educa seu povo, caminhando com ele, compreendendo suas fragilidades, respeitando suas etapas e alertando seus erros. Diante de tal afirmação, cabe-nos lembrar que vivemos num país marcado pela desigualdade, em que poucos têm acesso a uma educação de qualidade, libertadora e fraterna. Educar é contribuir para a superação do pecado. Uma Educação Antirracista combate o pecado do racismo. 

A Fraternidade e a Educação Antirracista buscam, à luz da fé, anunciar uma vivência com equidade e oportunidade para todos e todas numa sociedade que denuncia toda e qualquer forma de racismo que marginaliza, violenta e mata. 

A Educação Antirracista combate diversas nuances da expressão do racismo, no ambiente educacional, nas relações fraternas do dia a dia ou no ambiente eclesial, informa-se e valoriza as diversas contribuições dos nossos ancestrais e dos povos africanos, afro-brasileiros e ameríndios nas áreas do conhecimento que contribuíram para o nosso país e para o mundo. 

Todas crianças, adolescentes e adultos têm direito a uma educação de qualidade e inclusiva, baseada no reconhecimento e valorização da identidade, história e cultura dos diversos povos que ajudaram a formar nossa sociedade multiétnica e multirracial. 

Nesse sentido, todos os setores da Sociedade e da Igreja, assim como cada cidadão e cidadã, cada cristão e cada cristã, são agentes indispensáveis na tarefa de assegurar a inclusão equânime de todos os grupos sociais nos processos de desenvolvimento do país. Segundo o documento “Indicadores da qualidade na educação: Relações raciais na escola”, elaborado pela “Ação Educativa”, em parceria com a Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância), isso só será possível por meio da universalização de uma educação antidiscriminatória e de qualidade”. 

Educação antirracista

Educação Antirracista é antes de tudo uma ação, uma abordagem educativa que vai além dos espaços das escolas e universidades na busca por coibir a disseminação de discursos racistas e preconceituosos. A ideia é valorizar a identidade das diferentes nacionalidades e assim proteger pessoas pretas, sobretudo, as crianças que são vítimas de racismo desde cedo.

Por isso é urgente uma Educação Antirracista e Decolonial que dialogue com a realidade social, cultural, econômica e eclesial, que revele o quanto uma melhor compreensão do ser humano só é possível de forma transversal e conjunta, rompendo com dicotomias históricas inerentes ao processo colonizador. 

Adotar a Educação Antirracista nas escolas e no ambiente eclesial significa examinar opções não apenas relacionadas às atividades extracurriculares ou formações para lideranças nas comunidades paroquiais, é preciso enfatizar a diversidade de representações em livros, murais, brinquedos e cargos. 

Segundo fontes do IBGE de 2018, pessoas não brancas têm menos acesso à educação. A taxa de analfabetização da população preta é de 9,1% contra apenas 3,9% da população branca. Já a proporção de pessoas com ensino médio completo é de 40,3% da população preta para 55,8% da população branca. Os dados tornam-se mais alarmantes quando pensamos na evasão escolar, mais de 13% dos estudantes pretos, pardos e indígenas abandoaram os estudos até 2019. De acordo com os dados do INEP apenas 4,1% dos docentes são pretos, enquanto os docentes brancos somam 42%. Essa falta de representatividade de pessoas pretas no ambiente escolar, sobretudo nos cargos de direção e docência, leva as crianças pretas a entenderem sublinarmente que aquele não é o seu lugar. O mesmo fenômeno pode ser observado ao se considerar o número inexpressivo de padres, religiosos e religiosas pretos no ambiente eclesial. Tais fatores reafirmam, assim, o lugar de não identificação. 

Em entrevista com o frei João José de Jesus (2021), o frade relatou que ouviu de um padre que ele não poderia ser padre, porque ele era um homem preto. Numa Educação Antirracista, esse diálogo jamais existiria. O chamado vocacional na sua essência não atravessa a racialidade, mas, numa narrativa social/político, o chamado vocacional torna-se um ponto primordial na exclusão de pessoas pretas à vida religiosa.  

Todos esses dados nos mostram a ineficiência das escolas e da igreja em dialogar com os problemas das crianças e vocacionados/as não branco/as, protelando a identificação e punição das situações de racismo, que posteriormente apresentarão resultados discrepantes quanto à equidade racial do Brasil.

Percebe-se, assim, o quanto é complexo o racismo estrutural que se inicia na nossa base escolar/educacional e catequética, revelando-se a importância de que os mais novos sejam emergidos numa Educação Antirracista. As escolas e as igrejas têm um papel fundamental na missão de interromper essa cadeia, trazendo o debate de uma Educação Antirracista para dentro das salas de aulas e para os espaços eclesiais. 

5 práticas para uma educação antirracista

I. Lei 10.639/2003

Por meio da Lei 10.639/2003, prevista no Plano Nacional de Educação, torna-se obrigatório o ensino de História e Cultura Afro Brasileira e Africana nas escolas. Nesse sentido, o parágrafo 1º explicita que o conteúdo programático incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil e incluindo, no calendário escolar, o dia 20 de Novembro, aniversário de morte de Zumbi dos Palmares (1695), como “Dia Nacional da Consciência Negra”.

“Reconhecer exige a valorização e respeito às pessoas negras, à sua descendência africana, sua cultura e história. Significa buscar, compreender seus valores e lutas, ser sensível ao sofrimento causado por tantas formas de desqualificação: apelidos depreciativos, brincadeiras, piadas de mau gosto sugerindo incapacidade, ridicularizando seus traços físicos, a textura de seus cabelos, fazendo pouco das religiões de raiz africana. Implica criar condições para que os estudantes negros não sejam rejeitados em virtude da cor da sua pele, menosprezados em virtude de seus antepassados terem sido explorados como escravos, não sejam desencorajados de prosseguir estudos, de estudar questões que dizem respeito à comunidade negra”.

Parecer elaborado pela Prof. Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, membro do Conselho Nacional de Educação para fundamentação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a 7 Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana.

Contribua para que essa Lei seja executada. Segundo a filósofa estadunidense Angela Davis, “Numa sociedade racista não basta não ser racista. É preciso ser antirracista”. É preciso colocar em prática nossas falas de que não somos racistas.

Após 19 anos de sua implantação, muitas escolas ainda não adotaram as medidas: os avanços que ocorreram na implementação da legislação em questão foram por iniciativas próprias e isoladas de alguns profissionais.

Não há dúvidas de que a qualidade da educação depende da participação de todos os atores envolvidos em um clima de apoio e solidariedade. Avaliar o esforço e o compromisso com a educação no lugar onde moramos é um passo importante para construir caminhos novos que conduzam a uma educação de qualidade.

(Campanha da Fraternidade 2022, p. 13).   

II. Desnaturalização do racismo 

É preciso desnaturalizar o racismo. Práticas racistas no ambiente escolar devem ser tratadas com seriedade. Todavia, isso só será possível se o professor estiver atento e familiarizado com o debate étnico-racial, caso contrário, ele não perceberá o racismo que pode se esconder através de um comentário, piada, expressão ou gesto, ou mesmo, ainda que perceba o racismo, poderá achar natural. É importante que os estudantes percebam de forma didática porque esse comportamento não é aceitável.

A mesma reflexão se aplica ao ambiente eclesial: se falamos de conversão e construção do Reino de Deus, devemos também estar atentos ao pecado do racismo. Amarás teu próximo como a ti mesmo, fazeis bem; se, todavia, fazeis acepção de pessoas, cometeis pecado (Tg 2,8-9).

Se Deus não faz acepção de pessoas (At 10,34), por que nós então fazemos? Desnaturalizar o racismo é fazer uma leitura racializada da Bíblia. Denunciar o racismo (Lei 7.716/89) é uma ação profética.  O racismo jamais deve ser naturalizado.

III. Vocabulário

Nossa linguagem reflete um longo e perverso legado de escravidão, e, por isso, nosso vocabulário também se tornou um lugar de marginalização da população preta. Segundo Anna Érika Lima, professora do Instituto Federal do Ceará (IFCE), o protagonismo gozado por ínfima elite intelectual durante o processo de construção linguística do português, buscou extirpar o modo de falar mestiço, considerado populacho pelos escravocratas.

Algumas palavras e expressões são reproduzidas sem que as pessoas tenham o conhecimento histórico, o que evidencia o não cumprimento da lei citada anteriormente – o fato desses termos ainda serem usados mostra o quanto o problema segue enraizado nos costumes da sociedade.

Evite usar expressões: “a coisa tá preta”, “inveja branca”, “nasceu com um pé na cozinha”,

“amanhã é dia de branco”, “serviço de preto”, “cor do pecado”, “cabelo ruim”, “preto de alma branca”, “mercado negro”, “ovelha negra”, “criado-mudo”, “não sou tuas negas”, “feito nas coxas”, “samba de crioulo doido”, “denegrir”, “mulata” e tantas outras.

Nosso vocabulário e nossa forma de entender a sociedade foram pautadas na subalternização de pessoas pretas, por isso é preciso repensar nossa estrutura social e eclesial. 

Inclua no material de estudos personagens negros, princesas e príncipes negros, filósofos negros, artistas negros, pesquise sobre as questões étnico-raciais.

Pesquise sobre nosso vocabulário e o quanto ele perpetua uma relação de subalternidade de pessoas pretas, não espere que apenas pessoas pretas possam promover uma Educação Antirracista.  

IV. Valorização da cultura africana/afrodescendente

Por muito tempo, o ambiente escolar foi um dos maiores propagadores da cultura africana e afro-brasileira de maneira equivocada. Foi-nos apresentado um continente marcado apenas por notícias ruins ou sensacionalistas, um território de animais selvagens, guerras intermináveis, epidemias de fome e doenças.

O filósofo David Hume disseminou a ideia de que os negros eram naturalmente inferiores aos brancos, afirmando assim o racismo cientifico. Escreveu Hume em 1748: 

Eu suspeito que os negros, como em geral todas as outras espécies de seres humanos, sejam naturalmente inferiores aos brancos. Nunca houve entre eles nação alguma tão civilizada quanto entre os brancos. Nenhum grande inventor entre eles, nenhuma Arte, nenhuma ciência […]. Uma diferença tão constante e uniforme não poderia se repetir em tantos lugares e em épocas tão distintas se a natureza não tivesse também uma distinção original entre essas espécies de seres humanos. 

Assim como Hume, muitos outros intelectuais perpetuaram essa ideia de que pessoas pretas são inferiores as pessoas brancas. Entretanto, é necessário vencer tais afirmações. A África é o berço da humanidade e a história do seu povo é marcada por contribuições importantíssimas para a constituição da sociedade e do conhecimento.

Por exemplo, a origem da matemática é comumente vinculada aos Gregos, porém, 3.000 anos antes de Cristo, os egípcios, no Norte da África, já usavam cálculos para construir as pirâmides.

Ademais, considera-se, o título de “Pai da Medicina”, que é atribuído ao grego Hipócrates, mas que, na verdade seria mais apropriada ao cientista e clínico egípcio Imhontep, que quase três mil anos antes de Cristo praticava quase todas as técnicas básicas da medicina. O Egito possuía uma ciência médica e farmacológica sistematizada e muito desenvolvida, cujas recentes descobertas mostram que os cientistas egípcios tiveram a capacidade de promover cirurgias complexas como as cerebrais, de catarata ou o engessamento de membros com ossos quebrados, conhecer substâncias cicatrizantes e anestésicos. Pasmem! O Egito é um pais africano, e a África não é um país e sim um continente. 

Os povos africanos tiveram grande contribuição na Astronomia, com o conhecimento da existência do “pequenino satélite da estrela Sirius. Em 1978, os pesquisadores Peter Schimidt e o professor de engenharia Donald Avery anunciaram que tomaram ciência da tecnologia usada pelo povo Haya (povo de fala banto, habitante de uma região da Tanzânia perto do Lago Vitória), entre 15002000 anos atrás, para produzirem aço em fornos que atingiam temperaturas mais altas que os fornos europeus fossem capazes até o século XIX. Ruanda e Uganda se destacaram pelas tecnologias metalúrgicas.

Na engenharia, destaca-se o impressionante recurso tecnológico usado na construção da muralha do complexo urbano do Grande Zimbábue. Nessa monumental construção, as pedras são colocadas uma em cima da outra, sem cimento, de forma semelhante às construções dos sítios históricos do Peru (Macchu Picchu e Cuzco). 

A construção das pirâmides do antigo Egito também é um exemplo da grande contribuição dada pelos povos africanos à engenharia e à arquitetura. A matemática envolvida nessas construções é realmente impressionante. O uso de coordenadas retangulares para desenhar curvas e a precisão de até 0,07º aplicada no traçado de ângulos demonstram o avançado estágio da matemática nesse país africano. 

A navegação também foi um ponto forte do legado dos povos africanos. No Egito, a tecnologia naval já era suficientemente desenvolvida a ponto de terem realizado a circunavegação da África cerca de 2000 anos antes do suposto pioneirismo dos Portugueses.

 Ademais, a própria história do Brasil, que foi contada pelo olhar do colonizador e propagada nas escolas, acentuando a perspectiva de que o europeu é o detentor da civilização e de todo conhecimento, anula toda contribuição dos povos africanos na construção do país, conforme nos afirma Beatriz do Nascimento no livro Uma história feita por mãos negras. 

V. Apoie pessoas pretas  

 Mesmo diante de todo o cenário provocado pela colonização e dos efeitos nocivos da diáspora africana, a população preta segue resistindo e, para tal, consumir o trabalho de pessoas pretas é um passo importante para colaborar efetivamente com o combate ao epistemicídio e a efetivação de uma Educação Antirracista. 

Algumas atitudes que contribuem para ir na contramão da falta de representatividade que cerceia a sociedade brasileira incluem atos simples, como buscar ler mais autores pretos e valorizar a produções de cineastas, diretores e artistas pretos. 

Seguem algumas iniciativas de empreendedores pretos e como eles tem lutado contra o racismo estrutural e outros problemas sociais: livrarias especializadas na temática racial, movimento Black Money, rede de profissionais pretos que abrangem psicólogos, dentistas, profissionais da beleza, escritores, diaristas, professores, fisioterapeutas, cozinheiros, fotógrafos e tantos outros profissionais.

Desenvolva um olhar racializado e perceba como majoritariamente nossos profissionais são sempre pessoas brancas, e as pessoas pretas estão sempre nos subempregos. Observe no ambiente escolar e eclesial em quais funções estão as pessoas pretas.  

Considerações finais

 A Campanha da Fraternidade é um momento importante na vida da Igreja e da sociedade, seus objetivos e práticas devem tocar no cerne da nossa vivência cristã. Neste ano, a CF enfatiza a importância da educação integral, num olhar do ser humano como um todo, justificando para além da educação formal.

Como sujeitos sociais, políticos, históricos e cristãos, somos chamados a nos comprometer com a democratização da sociedade e do conhecimento na superação de uma educação racista e uma pedagogia colonialista. Tais mudanças atravessam toda a população do país, reeducando a compreensão da violência e exigindo políticas públicas de igualdade racial no combate a falácia da democracia racial. 

Trata-se, portanto, de um exercício de resgate de memórias e de revisão da maneira como contamos e compreendemos a nossa própria história.

Referência bibliográfica 

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RIBEIRO, Djamila. Pequeno manual antirracista. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. 135 p. 


[1] Licenciado em Filosofia pelo Instituto Santo Tomás de Aquino (ISTA/BH). Bacharel em Teologia pelo Instituto Santo Tomás de Aquino (ISTA/BH). Pesquisador em questões Étnico-raciais e decolonialidade na vivência fraterna/eclesial e Teologia Negra. E-mail: [email protected] 

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