A Infância de Jesus, seus irmãos e sua mãe, a Nossa Senhora do Carmo, na inspiração de Mt 12,46-50 e dos Evangelhos Apócrifos

Você sabe quem sãos os irmãos de Jesus? Não? Sua mãe, sim. É Maria, que também chamada de Nossa Senhora do Carmo.

Frei Jacir de Freitas Faria [1]

O evangelho sobre o qual vamos refletir hoje é Mt 12,46-50. Trata-se da família de Jesus. José não é citado, pois já havia morrido, conforme relato do evangelho apócrifo História de José, o Carpinteiro, texto do ano 380 da E.C. Você sabe quem sãos os irmãos de Jesus? Não? Sua mãe, sim. É Maria, que também chamada de Nossa Senhora do Carmo. Qual o sentido do escapulário que ela ofereceu ao monge Simão Stock (1165-1265 E.C.)? Ao falar de irmãos de Jesus, quero dizer uma palavra também sobre a sua infância. Para além do evangelho de Mt 12,46-50, onde encontraremos as respostas para essas questões? Elas estão na tradição de fé conservada pela literatura apócrifa, na Bíblia Apócrifa. Você já leu a Bíblia Apócrifa?

Iniciemos falando de Maria. Os apócrifos marianos, escritos, predominantemente, entre os séculos III e VII, possuem belíssimas narrativas literárias sobre Maria. Com forte influência sobre o cristianismo dos séculos V e VI, eles contribuíram para a formação de uma devoção a Maria, na vida da Igreja medieval e moderna. A morte assolava o Ocidente e com ela o pessimismo de viver, o medo da morte e do fogo do inferno, bem como do purgatório, norteava as vidas das pessoas. E foi nesse contexto que surgiu a devoção a Nossa Senhora do Carmo ou do Carmelo, que em hebraico significa ‘vinha de Deus”, um belo monte localizado no norte de Israel/Palestina. Ali atuou o profeta Elias em nome de Deus e contra os profetas de Baal (1Rs 18,20-40). Fez chover, buscando, com o côncavo das mãos, nuvens de chuva sobre o monte (1Rs18,41-46). Nesse local, o superior do carmelitas, Simão Stok invocava Nossa Senhora pedindo ajuda. A tradição diz que Maria lhe entregou um escapulário, um pedaço de pano que cobre o peito e as costas, uma armadura de proteção, que, mais tarde, se tornou o hábito dos carmelitas. O fato de ele ser de pano tem também relação com a túnica de Jesus, bem como a confeccionada por Maria para morrer, conforme tradição apócrifa. Ao oferecer a Simão o escapulário, Maria o faz com a promessa de que quem morresse usando-o, tendo cumprido os deveres de cristão, sairia, com a sua ajuda, do Purgatório no primeiro sábado depois de sua morte. Santa Brígida (1303-1373) diz que Nossa Senhora disse a Simão Stock: “Todo aquele que morrer revestido deste santo escapulário não arderá nas chamas do Inferno. Este hábito é um sinal de salvação, um amparo nos perigos e uma segurança de paz e aliança eterna”. [2] Na Idade Média, o imaginário do Inferno, criado pela Igreja, como lugar de pavor e medo, teve como consequência a criação também do imaginário do Purgatório, aprovado, depois de séculos de tradição, no II Concílio de Lyon, em 1274. Nossa Senhora do Carmo surge nesse contexto de medo generalizado das ciladas do demônio na hora da morte. O pavor de todos era morrer e perder o céu, indo direto para o inferno, sem passar pelo Purgatório, a antecâmara do Inferno. Maria, como advogada, surge para ajudar as almas a se livrarem do Purgatório.[3]

Vejamos, agora, a questão dos irmãos de Jesus, os quais desejavam falar com ele, pois perceberam que Ele estava agindo de forma não convencional para a tradição judaica. A resposta de Jesus ao interlocutor foi dura: “Meus irmãos são meus discípulos, os que fazem a vontade de meu Pai que está no céu” (Mt 12,50). Diante da missão de Jesus, os laços familiares são relativos. Irmão, em hebraico ’at, significa irmão de sangue, mas também parentes próximos, patrícios e vizinhos. São Jerônimo dirá que no evangelho trata-se de primos de Jesus. Os evangelhos apócrifos nos conservaram a tradição de que José, ao ser escolhido para casar-se com Maria, era viúvo, tinha 90 anos e quatro filhos: Judas, Justo, Tiago e Simeão; e duas filhas: Lísia e Lídia.[4] Quando Maria chegou à casa de José, também narram os apócrifos da infância, ela logo se afeiçoou a Tiago, o filho menor de José, que ainda sofria a ausência da mãe. Maria cuidou dele como mãe. Sendo assim, os irmãos de Jesus são de criação.

Jesus não nega os seus irmãos, tampouco sua mãe. Isso não era possível na cultura judaica. Irmão aqui quer dizer aquele que assume a causa do reino. Os irmãos de Jesus somos todos nós, seus seguidores. Maria foi a sua educadora e primeira apóstola. Ele a mostrou o caminho da fé, e ela o da vida, ao educá-lo.

E nessa perspectiva que podemos também falar da infância de Jesus, conforme a tradição da Bíblia Apócrifa. Os apócrifos da infância contam a história de um Menino Jesus travesso, poderoso e malvado, gnóstico, sábio, capaz de realizar milagres, farol de luz para a sua família. Elas se espalharam entre os cristãos para complementar o cristianismo hegemônico, no que tange à divindade e à humanidade de Jesus. A questão não era polemizar, mas sim clarear essa fase da vida de Jesus que ficou na penumbra, sanando curiosidades dos cristãos. Na Bíblia Apócrifa apresentamos a tradução de seis evangelhos da Infância de Jesus. O mais antigo dos apócrifos da infância, do ano 170, e intitulado de Evangelho Apócrifo do Pseudo-Tomé, conta que o Menino Jesus foi matriculado em uma escola, mas não precisa estudar, pois sabe mais do que seus mestres. Esse livro fala também da preexistência de Jesus e narra vários milagres ainda criança, como a história dos 12 passarinhos de barro. [5] O grande mérito dos apócrifos da infância foi o de dar a Jesus uma infância que ele não teve nos canônicos.

A descoberta e tradução dos livros apócrifos do Segundo Testamento é um mundo novo que se abre para nós cristãos. Eles procuram preencher lacunas sobre a vida de Jesus e seus seguidores, de forma complementar, aberrante ou alternativa em relação aos canônicos, ainda que tenham recebido influências de cristianismos gnósticos.

A relação entre apócrifos e evangelhos canônicos impõe-nos um exercício acadêmico de busca de compreensão dessa literatura para elucidar sua dimensão histórica, seus limites e seus valores para a compreensão de cristianismos primitivos, perdidos e rejeitados pelo cristianismo que se tornou hegemônico, mas não pela tradição de fé cristã no que se refere, dentre outros temas, as questões sobre Maria, os irmãos de Jesus e sua infância.

Se você ainda não teve acesso à Bíblia Apócrifa: Segundo Testamento, não deixe apreciá-la. A publicação é da editora Vozes. Estou fazendo o seu lançamento no Brasil. Para tanto, estarei no dia 7 de agosto, na Paróquia Senhor Bom Jesus, em Divinópolis (MG); dia 14 de agosto, no Centro de Evangelização Amoris Dei, em Belém do Pará; Também em Belém, dando um curso sobre a Bíblia Apócrifa e lançando-a, nos dia 15 e 16 de agosto, na CNBB\PA; dia 20 de agosto, na Paróquia Sagrado Coração, em Olinda (PE); na Universidade Católica de Pernambuco, dia 21 de agosto, Recife (PE); dia 9 de setembro, na PUC\PR, em Curitiba; dia 17 de setembro, na PUC\Rio e no Seminário São José; dia 25 de setembro, no Ifiteg, em Goiânia (GO).


[1]Doutor em Teologia Bíblica pela FAJE (BH). Mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Professor de Exegese Bíblica. Presidente da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB). Sacerdote Franciscano. Autor de treze livros e coautor de dezessete. Publicou recentemente Bíblia Apócrifa: Segundo Testamento (Vozes, 2025). São 784 páginas com a tradução de 67 apócrifos do Novo Testamento. Canal no   Youtube: Frei Jacir Bíblia e Apócrifos. https://www.youtube.com/channel/UCwbSE97jnR6jQwHRigX1KlQ 

[2] CORNAGLIOTTO, João Batista. Thesouro do christão. 8. ed. Rio de Janeiro: Garnier, 1889. p. 402, apud ESCAPULÁRIO DO CARMO. In: VAN DER POEL, Dicionário da religiosidade popular, p. 367. 

[3] FARIA, Jacir de Freitas. O Medo do Inferno e a arte de bem morrer: da devoção apócrifa à Dormição de Maria às irmandades de Nossa Senhora da Boa Morte. Petrópolis: Vozes, 2019, p. 140.

[4] FARIA, Jacir de Freitas. Infância apócrifa do menino Jesus:Histórias de ternura e de travessuras. 2ª reimpressão Petrópolis: Vozes, 2025, p. 22.

[5]FARIA, Jacir de Freitas, Bíblia Apócrifa: Segundo Testamento, Petrópolis: Vozes, 2025, p. 54.

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