O texto sobre qual vamos refletir hoje é Lc 1,39-56. Vamos relacioná-lo com Ap 12,1-10.
Prof. Dr. Frei Jacir de Freitas Faria, OFM[1]
O texto sobre qual vamos refletir hoje é Lc 1,39-56. Vamos relacioná-lo com Ap 12,1-10. Esses textos foram interpretados na perspectiva da Assunção de Nossa Senhora, festa católica que celebra o dogma Assunção de Maria e sua Dormição, isto é, a tradição de fé confirmada pela Igreja. Por que celebrar a assunção? Maria morreu ou não morreu? Dormiu? Foi levada aos céus de corpo e alma? Maria não ressuscitou? Se não morreu, não poderia também ressuscitar como Jesus? Qual é poder de Maria na vida e na hora de nossa morte? Quem é a besta do Apocalipse? Qual é o significado de 666? Que relação existe entre Maria e o medo do Inferno?
Todas essas questões surgem a partir da devoção à Assunção de Nossa Senhora, que se encontra em cinco evangelhos apócrifos, os quais não foram considerados inspirados pela Igreja, mas utilizados da definição do dogma da Assunção. Assunção significa elevação, isto é, Maria foi levada para o céu por Jesus. Já Dormição refere-se ao sono de Maria antes de sua ascensão, o que equivale dizer que ela não morreu, mas dormiu. Os apócrifos narram que Maria recebeu uma palma de Jesus, dizendo que, em três dias, ela morreria. Em sua casa, em Jerusalém, ele dormiu. Do seu corpo saia um suave perfume. Seu corpo é transladado para um sepulcro. Jesus veio com os anjos e a levou para o céu, onde a coroou como rainha do céu.
A devoção a Nossa Senhora da Assunção começou no Oriente. Com o decreto do imperador Maurício (592-602), o Império Romano passou a celebrar no Ocidente a Dormição e no Oriente, a Dormição e Assunção, ora do corpo, ora da alma.[2] Somente com os papas Adriano I, morto em 795, e Pascoal, morto em 824, a festa da Dormição passou a ser chamada de Assunção de Maria. Lutero, fundador da Reforma Protestante e morto em 1546, contestou essa fé mariana, ao afirmar que ela não está na Bíblia. Os portugueses trouxeram para o Brasil a devoção à Dormição e Assunção. Mulheres negras de uma Irmandade, na Bahia, releram a Dormição de Maria a partir de sua fé africana, contribuindo para o sincretismo luso-afro-brasileiro.[3]
No século XVIII, teólogos e bispos passaram a exigir do Vaticano uma palavra sobre a Assunção de Maria. No entanto, foi somente em 1950 que o Papa Pio XII, após ter enviado aos bispos um questionário sobre a questão, declarou o dogma da Assunção de Maria em corpo e alma à glória celestial.[4] O dogma deixa em aberto as duas possibilidades: a de que Maria foi acolhida em vida no Céu e a de sua passagem ou não pela morte física.
O fato de Maria não ter passado pela morte poderia conferir-lhe condições de interceder pelos seus irmãos, também humanos, diante de seu Filho. E foi o que aconteceu com ela, na Idade Média, tornando-se a advogada dos moribundos que, com medo de ir para o Inferno, recorriam a ela como advogada diante de seu Filho Jesus, que agia como juiz no julgamento, na hora da morte. O filme O Auto da Compadecida, do nosso dramaturgo Suassuna, é uma obra-prima sobre esse papel de Maria no Juízo Final. Com Maria, a Igreja estabeleceu a Pastoral do Medo, tendo como objetivo controlar vivos e mortos.
A interpretação de Lc 1,39-56 na perspectiva da Assunção de Maria significa dizer que o poder dela é o de ser a mãe do Senhor, de ser a bem-aventurada de Deus que a escolheu para derrubar os poderosos de seus tronos e elevar os empobrecidos. A força dela vem de Deus e do Filho que trazia em seu ventre. Seu Filho é sinal de misericórdia, perdão e caminho de transformação. Ser bem-aventurado é estar sempre na aventura do caminho, em marcha sempre.
Como a Maria do evangelho, no Apocalipse 12,1-12 temos uma mulher grávida e vestida de sol que aparece no céu, dominando a lua e com uma coroa de doze estrelas. Um dragão cor de fogo quer devorar o Filho que, ao nascer, vai para junto de Deus. Já a mulher foge par o deserto. Estamos diante de uma linguagem de sinais, uma linguagem apocalíptica, não de medo, como pensam muitos, mas de esperança. A gravidez representa o sofrimento das comunidades que eram martirizadas pelo império romano, após a morte de Jesus. Estar vestida de sol é o mesmo que estar integrada com a natureza e com Deus, que é luz. As dozes estrelas são o novo povo de Deus. As doze tribos tornam-se doze apóstolos e as novas comunidades de fé. O dragão é o poder do mal, do qual não se pode dizer o nome, mas era Nero, o imperador que mandava queimar cristãos vivos para iluminar as noites romanas. A cor vermelha é o sangue derramado por ele. Seu número é a soma do número das letras que compõem o seu nome em hebraico. Em hebraico, cada letra corresponde a um número. O seis é a imperfeição para o judeu.
No texto de Lc 1,39-56, o menino que vai nascer derrubará os poderosos. No Apocalipse, o Ressuscitado destrona o Imperador como sinal de esperança na resistência.
Celebrar a Assunção de Maria, mais que dizer o seu poder, é revestir a nossa vida de esperança apocalíptica, é esperançar. É não ter medo, como nos tempos medievais! É acreditar que podemos ser melhores, que nosso país dará voz e vez aos marginalizados de nossa sociedade. É retomar o sonho de um Brasil sem armas, de comida na mesa para todos. E como dizia Dom Helder Câmera: “Nem é preciso que os ricos saiam de mãos vazias!” Estamos grávidos de um novo tempo, de um poder que liberta a dor! Como Isabel, nossos ventres estremecerão de alegria com a derrubada dos Neros de nosso tempo. Sonhar é preciso! Ter medo, jamais! Assim, seremos assuntos em vida!
Confira o vídeo sobre o texto:
Foto: Banco de imagens gratuito – Cathopic.
[1] Doutor em Teologia Bíblica pela FAJE-BH. Mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Professor de exegese bíblica. Membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB). Sacerdote Franciscano. Autor de dez livros e coautor de quinze. Canal no You Tube: Frei Jacir Bíblia e Apócrifos ou https://www.youtube.com/c/FreiJacirdeFreitasFariaB%C3%ADbliaAp%C3%B3crifos
[2] TEMPORELLI, Clara. Maria mulher de Deus e dos pobres: releitura dos dogmas marianos, 2. ed., São Paulo: Paulus, 2011. p. 197.
[3] Uma análise completa da história da devoção mariana da Dormição e Assunção de Maria na Igreja a partir do seu papel exercido como advogada de vivos e mortos, nos Juízos Final e Particular, por causa do medo da morte e do Inferno, com destaque especial para o Brasil, nas Irmandades Negras de Nossa Senhora da Boa Morte, no século XVIII, está em nosso livro: O Medo do Inferno e a arte de bem morrer: da devoção apócrifa à Dormição de Maria às irmandades de Nossa Senhora da Boa Morte (Vozes, 2019).
[4] PIO XII, Papa. Carta Apótólica Munificentissimus Deus. Città del Vaticano, 1950.