Durante os cinco séculos de colonização pelo machado de ferro, o Brasil se transfigurou em um museu aberto do desmatamento, com a destruição de cerca de 1/3 de suas florestas tropicais.
Frei Valter Pinto Vieira Júnior, OFM
Tempo de ressignificar a História das Florestas
Sonho com uma Amazônia que lute pelos direitos dos mais pobres,
dos povos nativos, dos últimos, de modo que a sua voz seja ouvida
e sua dignidade promovida.
Sonho com uma Amazônia que preserve a riqueza cultural
que a caracteriza e na qual brilha de maneira tão variada a beleza humana.
Sonho com uma Amazônia que guarde zelosamente
a sedutora beleza natural que a adorna,
a vida transbordante que enche os seus rios e as suas florestas.
Sonho com comunidades cristãs capazes de se devotar
e encarnar de tal modo na Amazônia,
que deem à Igreja rostos novos com traços amazônicos.
(Papa Francisco, Querida Amazônia n. 7, 2020)
Um dos mais antigos quadros a óleo que retrata o Brasil, “Vista de Itamaracá”, (Gezicht op Itamaracá), pintado em 1637, em Pernambuco, pelo artista holandês Frans Post, encarregado de documentar a arquitetura, a paisagem e os costumes da região, mostra uma voçoroca (erosão), possivelmente causada pelo plantio de cana-de-açúcar, numa área que antes abrigava a vegetação de Mata Atlântica (Figura 1).

Durante os cinco séculos de colonização pelo machado de ferro, o Brasil se transfigurou em um museu aberto do desmatamento, com a destruição de cerca de 1/3 de suas florestas tropicais. Mesmo diante de uma longa história de processos erosivos intensos, tanto em relação à paisagem natural quanto em relação à cultura dos povos nativos, a obra da deterioração socioambiental segue adiante, de modo implacável. Parafraseando Ailton Krenak, a história brasileira foi e está sendo construída sobre um cemitério de árvores, bichos e gente.
Os dois biomas com predominância de florestas tropicais, a Mata Atlântica e a Amazônia, ocupavam juntos, originalmente, cerca de 71% do território brasileiro. A partir do legado histórico do desmatamento, a Mata Atlântica brasileira perdeu 93% de sua cobertura, foi reduzida a 7% de sua área original. De acordo com um estudo do MapBiomas, no período entre 1985 e 2023, 14% da vegetação nativa da Amazônia desapareceu. Mais de 65% da fragmentação e da devastação das florestas tropicais ocorreram nos últimos cinquenta anos, no contexto da Grande Aceleração, ocasionando um impacto sem precedentes nos sistemas naturais do planeta.
No sentido de ampliar a reflexão sobre este processo erosivo das florestas tropicais, inúmeras questões tornam-se legítimas: por que destruímos a floresta? E por que no último meio século? Como explicar a transformação das áreas de florestas tropicais em outras atividades? Ao brasileiro e ao planeta, qual o custo socioambiental desta opção? Quem toma as decisões sobre este processo? Como reverter o panorama de crise no mundo rural, o cenário da violência e da insegurança alimentar? É contraditória a lógica da urbanização com o caminho da sustentabilidade? (Rivero et al., 2009).
Em meio às ruínas da Mata Atlântica, vive a maioria dos brasileiros (mais de 150 milhões de pessoas). A Amazônia, por sua vez, não é mais um deserto demográfico. É fantasioso imaginar que o maior bioma brasileiro é constituído de uma floresta onde há somente água, plantas e animais lendários. Na obra “Índios da Amazônia Adorando o Deus-Sol”, de François-Auguste Biard (1860 – 1861), os personagens são retratados como seres exóticos e o quadro demonstra a sensação da magia das terras tropicais, com total ausência do elemento urbano. (Figura 2). Em contrapartida, estima-se que, com o avanço constante da população na região amazônica nos últimos anos, há cerca de 30 milhões de habitantes, em 551 municípios e 748 cidades, que necessitam do acesso à educação, ao trabalho, saúde, alimentação e vida digna. (IBGE 2022).

Acervo da Fundação Estudar, em comodato com a Pinacoteca do Estado de São Paulo.
Segundo Meirelles Filho (2014), a pecuária constitui o principal vetor de pressão sobre a floresta amazônica, juntamente com a exploração ilegal de madeira, mineração e metalurgia. Como consequência dos sucessivos mecanismos de degradação, na perspectiva de uma economia globalizada, destacam-se a perda incomparável de biodiversidade, os impactos climáticos, incalculáveis danos à vida e à cultura das comunidades indígenas e a baixa qualidade de vida da população crescente, envolta numa atmosfera de violência, criminalidade e vulnerabilidade. Diante dessa realidade, constata-se a verdade da equação de que quanto mais aumenta a erosão da diversidade biológica, mais cresce a injustiça social.
A data de 05 de setembro soa como uma homenagem à criação da Província do Amazonas, por Dom Pedro II, no ano de 1850. Após 175 anos deste feito, torna-se essencial a condução de uma agenda pública, que conjugue a educação para a sustentabilidade e as práticas do bem-viver, que se revolte com a miséria e ressignifique a história das florestas, que permita tecer o compromisso, juntamente com as próximas gerações, em favor de uma Amazônia melhor conservada e mais respeitada, na qual os brasileiros assumam o papel de cidadão-protagonista para a conservação deste magnífico bioma e a valorização de seus povos, especialmente os nativos, tradicionais e mais vulneráveis.
Referências:
FRANCISCO. Exortação apostólica pós-sinodal Querida Amazônia do Santo Padre Francisco ao povo de Deus e a todas as pessoas de boa vontade, Roma, 02 de fevereiro de 2020.
INSTITUTO NACIONAL DE PESQUISAS ESPACIAIS (INPE). Programa de Cálculo do Desflorestamento da Amazônia (PRODES): desflorestamento nos municípios da Amazônia Legal. Ano base 2009.
MEIRELLES FILHO, João Carlos de Souza. É possível superar a herança da ditadura brasileira (1964-1985) e controlar o desmatamento na Amazônia? Não, enquanto a pecuária bovina prosseguir como principal vetor de desmatamento. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas. V. 9, n. 1, p. 219-241, jan.-abr. 2014.
MEIRELLES FILHO, João Carlos de Souza. Por que criminalizar a pecuária na Amazônia? São Paulo, 18 maio 2009a.
O ÍNDIO SEM TUTELA. Entrevista com Daniel Munduruku, concedida ao jornalista Fábio Rayel. Revista Raiz, s.d.
RIVERO, Sérgio; ALMEIDA, Oriana; AVILA, Saulo; OLIVEIRA, Wesley. Pecuária e desmatamento: uma análise das principais causas diretas do desmatamento na Amazônia. Nova Economia, v. 19, n. 1, p.41-66, 2009.
VERÍSSIMO, A.; ROLLA, A.; VEDOVETO, M.; FUTADA, S. M. Áreas protegidas na Amazônia brasileira: avanços e desafios. Belém: IMAZON; São Paulo: ISA, 2011.