A proposta franciscana para hoje é uma revolução da ternura e da simplicidade. É a coragem de construir, aqui e agora, nos interstícios de um sistema muitas vezes desumano, pequenos oásis de fraternidade universal, que sirvam de semente para um mundo mais justo, pacífico e irmão.
Frei Laércio Jorge, OFM[1]
A figura de São Francisco de Assis, quando analisada para além da hagiografia, apresenta-se como um fenômeno social de profunda relevância. Sua trajetória pode ser lida como um contundente comentário sociológico sobre a relação entre o indivíduo, as estruturas de poder e a construção de uma comunidade alternativa.
1. A não-indiferença como postura fundamental
Francisco não foi “indiferente ao seu contexto histórico”. Esta é a premissa inicial de qualquer ação social transformadora. No auge do mercantilismo medieval e das cruzadas, ele era filho da nova classe burguesa emergente – os mercadores –, classe que acumulava riqueza e acentuava as desigualdades sociais. A não-indiferença de Francisco não era uma mera piedade, mas uma consciência aguda da disfunção social. Ele percebeu que a lógica econômica de seu pai, Pietro Bernardone, baseada na acumulação e no status, gerava exclusão e pobreza. Francisco recusou a “anomia[2]” – o estado de desregramento e indiferença – que uma sociedade em rápida transformação pode produzir. Sua opção pelos leprosos, os párias de seu tempo, foi um ato político de ressignificação: ele foi ao encontro daquilo que o sistema rejeitava, humanizando o desumano.
2. O rompimento com o Sistema
O “rompimento com o sistema” não foi um ato de furor juvenil, mas uma sequência de atos públicos e calculados de desobediência simbólica contra os três pilares do poder medieval:
– Sistema Político local (Prefeito e Bispo): Ao despir-se em praça pública, Francisco não apenas renunciava à herança paterna, mas deslegitimava toda a estrutura social que tinha a propriedade e a honra familiar como fundamento. Ele devolvia ao sistema a sua moeda de troca – as roupas, símbolo do status – e se colocava nu, como um novo Adão, fora daquela lógica. Era uma greve contra o ethos capitalista nascente.
– Sistema Político internacional (Sultão): No auge do conflito de civilizações que eram as Cruzadas, Francisco não foi como guerreiro, mas como irmão. Seu encontro com o Sultão Al-Kamil foi um ato de diálogo contra-hegemônico. Ele desafiou a lógica do “choque de civilizações” propondo um encontro pacífico, baseado não na disputa dogmática, mas no testemunho humilde. Foi uma crítica à instrumentalização da religião para fins geopolíticos e expansionistas.
– Sistema Religioso (Papa): Ao buscar a aprovação da sua nova forma de vida religiosa, Francisco desafiou a Igreja institucionalizada, rica e poderosa, com um projeto de pobreza evangélica radical. A aprovação da Regra não foi uma simples benção, mas o reconhecimento, por parte do sistema, de uma crítica interna que ele não podia ignorar. Francisco, assim, propunha uma reforma a partir das margens, mostrando que a autenticidade religiosa muitas vezes habita fora dos centros de poder.
3. A “Vida Irmanda” como projeto social alternativo
A “consciência de uma vida irmã” é talvez a sua contribuição mais revolucionária. A máxima “valemos o que somos diante de Deus, nem mais, nem menos” é um princípio de igualdade radical. Ela desmonta todas as hierarquias sociais: nobreza, clero, burguesia, servos. Na fraternidade franciscana, o valor do indivíduo não deriva do seu nascimento, riqueza ou saber, mas de sua pura existência como criatura. Isso se estende à criação com o “Cântico do Irmão Sol”, onde Francisco propõe uma ecologia integral avant la lettre[3], uma relação fraterna com a natureza, não de dominação, mas de comunhão. Ele funda, assim, uma comunidade de sentido alternativa, baseada na reciprocidade, na simplicidade e no cuidado.
Respostas para o Nosso Tempo: O Desafio Franciscano Hoje
Qual desafio São Francisco coloca para seus seguidores hoje?
O desafio é o mesmo de sempre, mas com novas roupagens: romper com a indiferença e com os sistemas que produzem desigualdade e descarte. Hoje, o “sistema” não é apenas o medieval, mas o capitalismo globalizado e financeirizado, a cultura do consumo e do descarte (de coisas e de pessoas), e o antropoceno – a era em que a ação humana degrada o planeta. O desafio é:
– Ser “não-indiferente” ao migrante, ao pobre, ao diferente, ao ecossistema em colapso.
– “Romper” simbolicamente, desvestindo-se não de roupas, mas do consumismo, do individualismo, do preconceito e da lógica da competição.
– Viver a “fraternidade” como um projeto político, econômico e ecológico, criando espaços de convivência onde todos são irmãos e irmãs, “nem mais, nem menos”.
E qual resposta ao mundo podemos dar intuídos pelo testemunho de Francisco?
A resposta é o testemunho de uma vida alternativa. Não basta falar; é preciso ser um sinal de contradição. Isso se traduz em:
1- Uma Ecologia Integral prática: Adotar estilos de vida sóbrios, sustentáveis, que respeitem todas as criaturas, combatendo a cultura do desperdício [agroecologia].
2- Uma Economia de Comunhão: Promover modelos econômicos baseados na partilha, na solidariedade e no bem comum, em contraposição à acumulação infinita [Casas de Francisco].
3- Um Diálogo Radical: Ir ao encontro do “Sultão” moderno – seja ele um grupo de outra fé, uma ideologia oposta ou uma cultura distante – não para conquistar, mas para escutar e reconhecer a irmandade na humanidade comum [ecumenismo].
4- Uma Simplicidade Voluntária: Escolher viver com menos, como um protesto vivo contra a desigualdade e como uma afirmação de que a felicidade não está nos bens materiais [o menos, é mais].
Por fim, olhando para a Vida Religiosa atualmente, o que nós propomos com as nossas presenças?
Inspirados por Francisco, a Vida Religiosa é chamada a ser uma profecia institucional. Não pode ser um refúgio do mundo, mas um laboratório de humanidade nova. O que propomos é:
– Ser profecia a partir da margem: Não buscar o poder e o prestígio no centro, mas posicionar-se criativamente nas periferias existenciais, geográficas e eclesiais. Ser voz que denuncia a injustiça e anuncia a fraternidade possível.
– Cultivar hospitalidade radical: Transformar mosteiros e casas religiosas em espaços de acolhida, diálogo e cura, onde a lógica do mercado não é a regra.
– Viver uma espiritualidade encarnada: Uma espiritualidade que não foge do mundo, mas que se suja com as dores e as alegrias da humanidade e da criação, assumindo a “não-indiferença” como método espiritual.
– Repensar as formas: Assim como Francisco adaptou a vida religiosa ao seu tempo, é urgente questionar estruturas envelhecidas e ousar novas formas de viver em fraternidade, que falem à juventude e aos anseios do mundo contemporâneo.
A proposta franciscana para hoje é uma revolução da ternura e da simplicidade. É a coragem de construir, aqui e agora, nos interstícios de um sistema muitas vezes desumano, pequenos oásis de fraternidade universal, que sirvam de semente para um mundo mais justo, pacífico e irmão.
Isso sim, seria um Viva a São Francisco!
Paz e Bem!
Soberania também!
[1] Frei Laércio Jorge. Por ocasião da Festa de São Francisco, 2025.
[2] Anomia refere-se a um estado social caracterizado pela ausência ou enfraquecimento de normas, valores e regras sociais, levando à desorientação, insegurança e perda de identidade nos indivíduos. Este conceito sociológico, popularizado por Émile Durkheim, descreve a falta de regulação social que ocorre, por exemplo, em períodos de crise econômica ou rápida transformação social, quando as instituições não conseguem orientar os indivíduos de forma eficaz.
[3] Antes da letra.
Fotos: Celebração do dia de São Francisco de Assis na Paróquia São Francisco, em Betim/MG



