Esse texto de Mateus, lido na liturgia do segundo domingo do mês de agosto, quando no Brasil, desde 1953, é celebrado o “Dia dos Pais”, nos faz pensar sobre a paternidade. O que significa exercê-la sem medo?
A propósito do “Dia dos Pais” (Mt 14,22-33)
Frei Jacir de Freitas Faria 1
O texto que inspira a nossa reflexão de hoje é Mt 14,22-33. Trata-se de Jesus que, após ter feito a multiplicação dos pães e rezado na montanha, aparece aos discípulos caminhando sobre as águas do mar da Galileia. Era madrugada, entre 3 e 6 horas da manhã. Os discípulos pensavam que se tratava de um fantasma. Pedro vai ao encontro de Jesus e afunda por falta de fé sólida. Jesus o toma pela mão. Na cena anterior, Jesus havia dito aos discípulos: “Tende confiança, sou eu, não tenhais medo” (Mt 14,27). A propósito, refletimos sobre o sentido do medo em nossas vidas. Por que a Igreja uniu o medo com religião? Você tem medo de quê? Por que o medo existe? O que estudiosos dizem sobre o medo? Vejamos!
Esse texto de Mateus, lido na liturgia do segundo domingo do mês de agosto, quando no Brasil, desde 1953, é celebrado o “Dia dos Pais”, nos faz pensar sobre a paternidade. O que significa exercê-la sem medo?
Na passagem de Mateus, ousaria afirmar que Jesus é o pai que se relaciona com os seus filhos adotivos, os apóstolos, com o objetivo de encorajá-los a ter fé. Ser pai não é tarefa fácil. A vida é constantemente um mar de perigos. Somos chamados a navegar, a avançar sem medo e com fé.
Depois da multiplicação dos pães, Jesus sente medo diante da multidão que o cercava. Ele prefere ficar a sós para rezar, pois sente que as coisas não estavam fáceis. Ele precisava recorrer ao seu Pai, no alto de uma montanha, isto é, de forma próxima. Todo pai, diante dos sofrimentos, precisa distanciar-se dos filhos para encontrar forças para seguir adiante. Jesus manda os discípulos para o outro lado do mar. Estar no mar é estar em perigo. O mar, no tempo de Jesus, é o lugar do perigo, da morada de um demônio, visto como um grande peixe ou serpente marinha, chamado de Leviatã. A devoção a Nossa Senhora da Boa Viagem tem relação com os perigos do mar. A Igreja pedia aos marinheiros que levassem a imagem de Nossa Senhora e carneiros, os quais deveriam ser despedaçados e atirados ao mar, quando esse estivesse revolto. Desse modo, o monstro, o demônio das águas, ficaria calmo. Para eles, o mar revolto era sinal evidente da presença do Leviatã.
Para Jesus, os apóstolos deveriam enfrentar as dificuldades inerentes ao mar, à missão. Na vida, não podemos fugir dos problemas, mas enfrentá-los. O caminhar de Jesus sobre as águas é o sinal de que ele tem poder sobre as forças demoníacas. A comunidade se lembra desse episódio com Jesus para incentivar os desanimados e os que estavam aderindo Roma a voltarem para o caminho da fé no ressuscitado.
“Tende confiança, sou eu, não tenhais medo” (Mt 14,27), disse Jesus aos discípulos. O “sou eu” é o nome de Deus que nos liberta da dor e da opressão. Deus está com os discípulos, está conosco. Deus está com todos os pais que educam, na labuta do dia a dia, os filhos para enfrentar o mar da vida. Pedro diz a Jesus: “Senhor, se és tu mesmo, manda que eu caminhe sobre as águas”. Pedro tem fé ao chamar Jesus de Senhor, mas ela ainda é fraca. Como um filho que ensaia seus primeiros passos, Jesus lhe diz: “Vem!” E estende a sua mão para o filho. Quando o filho, por causa da sua imaturidade, afunda no mar de lama, nas drogas, nos descaminhos, há sempre por perto um pai, um amigo, que novamente estende-lhe a mão e o recoloca na barca da vida, da comunidade de fé. Há pais que nunca passaram segurança para os seus filhos enfrentarem os medos nas ondas agitadas da vida! Há filhos que choram uma vida inteira a ausência de um pai, um “porto seguro” que nunca tiveram. A música do Pastor Nelson Mota, composta em 1973, “Segura nas mãos de Deus”, é muita significativa diante do medo. “Se as águas do mar da vida quiserem te afogar, segura nas mãos de Deus e vai, pois ela te sustentará…”
Ainda sobre o medo, podemos afirmar que o ser humano, diferentemente dos animais, vive num medo eterno. Estudiosos, como Philippe Ariès, Jean Delumeau, Jacques Le Goff, estudaram o fenômeno do medo na Idade Média e o modo como a Igreja os explicitou no imaginário religioso e tornou o medo presente na vida das pessoas para controlá-las.
O francês Jean Delumeau, morto em 2020, grande historiador sobre o medo, citando Delpierre, diz: “O homem é o único no mundo a conhecer o medo em um grau tão terrível e duradouro. Sem o medo nenhuma espécie teria sobrevivido”.[1] O medo paralisa as pessoas, impede o crescimento, pode ser usado como arma de domínio, controle. Pior ainda quando vem associado ao fator religioso.[2]
No mundo antigo, o medo estava associado a divindades. Os gregos adoravam Deimos e Fobos: o primeiro representava o temor, e o segundo, o medo. Essas divindades estavam associadas e interferiam na vida das pessoas. Portanto, era necessário prestar-lhe culto para obter favores. Foi assim entre gregos e romanos.[3]
A Europa da Idade Média conheceu várias pestes que dizimaram populações inteiras, sendo as mais importantes a peste de Justiniano (séc. VI), a peste bubônica ou negra (1348-1351) e a peste de Marselha (1720). Essas epidemias, associadas às guerras, criaram situações de medo da morte e da peste nas populações. Não foi diferente conosco, entre os anos de 2020 e 2021.
Ao longo da história, outros tantos medos aterrorizavam as pessoas: medo de lobos, da natureza, do mar, de cemitérios, das almas penadas, do diabo, dos torturadores, do pregador (padre), etc. Frei Tito de Alencar Lima, torturado na época da repressão militar no Brasil, exilado na França, enforcou-se em uma árvore, em 1974, possivelmente por medo do torturador que carregava dentro de sua mente. Não conseguiu superar a situação.
O medo de almas penadas faz parte da cultura portuguesa e está associado à crença de que as almas que foram para o Purgatório, depois de um determinado tempo, poderiam voltar para penar (vagar) diante dos vivos, buscando soluções para situações não resolvidas.[4]
Os medos da Idade Média ganharam força com a Inquisição na Igreja (séc. XIII-XVIII). O cristão era levado a ter medo de si mesmo, o que equivaleria a ter medo de Satanás, para não se tornar agente dele. Diante de uma angústia coletiva, o Juízo Final estabeleceria a punição para os culpados, os quais impediam a ação de Cristo no mundo. Para a inquisição, os culpados tinham nomes: turcos, judeus, heréticos, mulheres feiticeiras etc.
Bom, diante de tantos medos, o importante é libertar-se deles e não deixar que eles voltem, sobretudo os utilizados para o controle de religioso. Pais nunca imponham o medo para dominar. Deus está conosco! Ele é sempre um pai disposto a nos dar as mãos nas horas difíceis. Ele não é um fantasma, mas real. No mar da vida, encontramos muitas dificuldades. Sem a fé podemos afundar, mas quem crê está salvo. Segura nas mãos Deus e vai…
[1] DELUMEAU, Jean. História do Medo no Ocidente 1300 – 1800: uma cidade sitiada. 3. reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 19.
[2] Para um um estudo sobre o medo do Inferno e a morte, veja o nosso livro: FARIA, Jacir de Freitas; O medo do Inferno e a arte de bem morrer. Da devoção apócrifa à Dormição de Maria às irmandades de Nossa Senhora da Boa Moa Morte. Petrópolis: Vozes, 2019..
[3] DELUMEAU, Jean. História do Medo no Ocidente 1300 – 1800: uma cidade sitiada. 3. reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 20-21.
[4] PARAFITA, Alexandre. O Maravilhoso Popular: contos – lendas – mitos. Lisboa: Plátano Editora, 2000.