Miqueias: o profeta da independência e da esperança

Miqueias: o profeta da independência e da esperança

A profecia de Miqueias pode ser interpretada e analisada a partir do verbo “ver”, pois este termo marca o início de sua mensagem.

Frei Vitor Vinicios da Silva, OFM¹

A profecia de Miqueias pode ser interpretada e analisada a partir do verbo “ver”, pois este termo marca o início de sua mensagem. “Aquilo que ele viu acerca de Samaria e Jerusalém” (1,1) é a frase que nos permite entender que o verbo ‘ver’ pressupõe o sentido dinâmico de discernir, de julgar e submeter-se à vontade do Senhor. Nesse sentido, vamos percorrer a profecia de Miqueias demarcando dois elementos imprescindíveis na sua atividade, isto é, a independência da sua missão e a esperança como elemento basilar que caminha junto à tarefa de denunciar. Portanto, abordaremos esses dois temas fundamentados no tripé bíblico, composto pelos seguintes elementos: o contexto, no qual a Palavra se manifesta; o pré-texto, que consiste nas questões às quais o texto busca responder; e o texto propriamente dito, que será analisado considerando sua relevância tanto para o passado quanto para o presente.

Ao lermos a profecia é preciso compreender o contexto da atividade do profeta. O chão que ele pisa tem como público destinatário a população campesina judaica que estava vivendo um tempo de muita turbulência. A atividade do profeta percorre o reinado de três monarcas do final do século VIII a. C. ao início do século VII a. C. Esses três períodos são caracterizados pela prosperidade devido à decadência do império assírio (Joatão 742-735 a.C.); pelas diversas tentativas de libertação dos estrangeiros (Acaz 735 -715 a. C.) e pela revolta contra o rei da Assíria uma vez que deixam de ser submissos (Ezequias 715-687). Sendo assim, o contexto vivido pelo profeta é dinâmico e, por isso, sua profecia é crítica e dura em suas denúncias.

O cenário é ilustrado pela metáfora apresentada no início da profecia, na qual é descrita a insatisfação de Deus com a situação vigente. Em consequência, Ele decide intervir na história, observando de perto o comportamento do povo.  “Pois eis que o Senhor sai de seu lugar, desce e caminha sobre as alturas da terra […] Tudo isto por causa da transgressão de Jacó e pelos pecados da casa de Israel (Mq 1,3-5). Em simples palavras, o motivo dessa intervenção de Deus é derivado do descompasso entre a vontade divina e a crueldade que viraliza contra os explorados. 

O profeta denuncia um contexto de muita injustiça e exploração cujos destinatários são as lideranças políticas e religiosas, localizadas nas cidades capitais sendo o centro do poder. As metáforas usadas pelo profeta nos apontam um cenário desolador, os ricos e poderosos “[…] comem a carne de meu povo, a pele deles arrancam, seus ossos, eles rompem, e os talham como carne na panela, como carne no meio do caldeirão” (Mq 3,3). Já em relação às viúvas e aos órfãos, afirma que o povo (exploradores) os havia expulsado da “[…] casa de suas delícias, [e] de suas crianças tirastes para sempre meu esplendor” (Mq 2,9), ou seja, estão expostos e fragilizados aos interesses espúrios dos poderosos. Aqui, está em jogo o destino dos fracos e pobres que são vítimas das lideranças que “cobiçam campos, os roubam, defraudam o proprietário e suas casas, o homem e sua herança” (Mq 2,2). Por outro lado, denunciam os profetas que estão coniventes com os poderosos e, segundo o Senhor, “[…] desencaminham o [seu] povo, os que, tendo algo a morder entre os dentes, clamam: Paz!” (Mq 3, 5). Em outros ditos, são profecias movidas pelo dinheiro e propinas, “seus chefes julgam por presentes, seus sacerdotes ensinam por pagamento, seus profetas adivinham por dinheiro, e sobre o Senhor se apoiam, dizendo: ‘Não está o Senhor no meio de nós? Não virá sobre nós o mal!” (Mq 3,11). Em síntese, há uma “[..] descrição da injustiça generalizada, em Mq 7, 1-6, [em que] alude à animosidade contra Deus disseminada na sociedade, em forma de corrupção das relações sociais” (VITÓRIO, 2022, p.434).

Em consequência, Deus decide instaurar um processo, pois “[…] um processo contra o seu povo e contra Israel entra em juízo.” (Mq 6,2). Os réus no processo são os poderosos que extraviam o povo do caminho do Senhor. São esses que enganam quando apontam um culto falso no qual o Senhor indaga: “Acaso o Senhor se agradará por milhares de carneiros por miríades de torrentes de óleo? (Mq 6,7). Ao contrário, o Senhor deseja um caminhar ético onde o culto está em segundo plano e o que importa é o que ocorre nas relações interpessoais, na busca por construir uma sociedade sem pobres e excluídos. Em síntese, realizavam um culto inútil que não atingia Deus, pois “o culto passa pela vida e não pelo templo” (STRELHOW, 2013, p.93).

Com base nesse chão pisado pelo profeta em que cumpre o papel de diagnosticar o comportamento ético da Samaria e Jerusalém, o Senhor decide instaurar um julgamento que terá como pressuposto aquilo que foi ensinado aos homens e mulheres, um proceder ético. “Ele te deu a conhecer, ó homem, o que é bom e o que o Senhor procura de ti: simplesmente praticar o direito, amar a bondade e caminhar humildemente com o teu Deus “(Mq 6,8). Sendo assim, o Senhor abre esse processo com o fim de restabelecer o direito e a misericórdia como norteadores das relações sociais (Mq 6,1-5).

Dado isso, a conjectura do profeta é recebida como blasfêmia pela elite daquele tempo uma vez que colocava em xeque a segurança dos poderosos. Segundo Miqueias, “por causa de vós, Sião será um campo arado, Jerusalém será um monte de ruínas, e o monte do templo, lugares altos cobertos de mato”. (3,12). Ademais, não se retém as denúncias, mas anuncia as desgraças para aqueles que nutrem esses cenários, “Eis que tramo contra este clã o mal” (Mq 2,3), pois “não há um justo entre os homens (Mq 7,2). No fim, o profeta é radical em sua profecia, não está sinalizando uma reforma, mas um começar totalmente novo e, por causa disso, será odiado pelas lideranças. 

Essa teologia é incômoda e, consequentemente, o profeta colherá a perseguição dos poderosos. Entretanto, a tarefa do profeta é movida pela “[…] força (kôn) do espírito de YHWH, [pelo] direito (mishpat) e [pela] coragem (geburah)” (VITÓRIO, 2022, p.428). Por conseguinte, verificamos aqui a dimensão da independência do agir profético, é preciso tornar-se livres e fiéis ao projeto apontado pelo Deus (Mq 6,8) para instaurar o desejo divino. O profeta não se esquiva das lideranças políticas, denuncia a fragilidade dos profetas áulicos (profetas que atuavam nos palácios) que julgavam segundo a conveniência e encobriam o pecado (Mq 3,5). Essa fidelidade é movida pela fé e é possível apenas por aquele que está com o olhar fixo no projeto do Deus, “Eu, porém, no Senhor fixarei os olhos, aguardarei o Deus de minha salvação. E meu Deus me ouvirá” (Mq 7,7). Com base nesses pressupostos, denuncia a falsa segurança do culto estéreo, que se reduz apenas ao rito, realizado no templo diante do esquecimento do direito e da justiça, que ameaça o status quo daquele tempo. Em consonância, há também a dimensão da esperança, uma vez que o profeta garante a escuta de Deus. É importante diagnosticar essa dimensão da profecia, pois por mais que o cenário seja caótico, o Deus de Israel sempre disponibiliza o caminho da conversão, ou seja, o da mudança de vida. Nas falas em que o profeta diz: “Sião será um campo arado, Jerusalém será um monte de ruínas” (Mq 3,12), é possível compreender uma esperança enviesada. Aquilo que pode ser visto como ruína para alguns para outros pode ser visto como um novo terreno a brotar. No fim, além das denúncias e ameaças, há no bojo da profecia a esperança como caminho da conversão.

Em outro momento, vemos também a esperança que nasce do interior, na Belém de Éfrata. Desse lugar “sairá o que há de ser o dominador de Israel (Mq 5,1). Esse pastor (Mq 5,3) é aquele que instaura o oposto daquilo que Miqueias denuncia, ou seja, lideranças opressoras (Mq 3,3). Será descendente de Davi que rompe com essa situação injusta e dará início a um novo tempo de direito e justiça, é aquele que defenderá os excluídos e “este será a paz” (Mq 5,4). Essa paz (shalom) é o resultado da missão desse pastor, é o estado de prosperidade, felicidade e justiça para todo o povo de Israel. Em suma, o profeta assume sua missão com fidelidade (independente das instituições) mesmo correndo o risco de ser dizimado, continua fiel ao projeto de Deus, mas sem deixar de anunciar a esperança de um mundo novo.

Com base nesta síntese da profecia de Miqueias, podemos observar a relevância contínua de sua mensagem para os dias atuais. As respostas que o profeta buscava para as diversas indagações ainda são pertinentes em nosso tempo. O cenário caótico descrito por Miqueias, onde muitos são explorados por uma pequena parcela de poderosos que se beneficiam do sacrifício de muitos, permanece uma característica marcante da nossa sociedade. Além disso, a religião a serviço do poder autoritário que contribui para a alienação do povo é pauta diária nos debates políticos. Há um uso da religião como verniz de interesses privados encobertos por líderes políticos, uma clara conjectura de exploração, sobretudo dos países considerados submundos. Dado isso, o profeta nos ensina a sermos fiéis e falar de Deus em um cenário desolador, denunciar os deuses customizados que são narrados em nosso tempo. Por outro lado, nos nutre com a esperança de um povo restaurado, de fronteiras ampliadas para acolher a multidão (Mq 7, 11-13). Assim, o profeta nos convoca à independência dos cristãos para denunciar essas realidades gritantes, é necessário dar voz ao “Grito dos Excluídos” e, movidos pela força do Espírito de YHWH (Mq 3,8), anunciar a esperança de vida ao nosso povo, essa esperança, no sentido de “esperançar”, é uma esperança ativa, de levantar-se e construir.

¹ Graduado em Filosofia pelo Instituto Santo Tomás de Aquino, graduando em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia e Especialista em Ensino Religioso e Gestão Integradora pelo Instituto Pedagógico de Minas Gerais, IPEMIG.

REFERÊNCIAS

BÍBLIA Sagrada. 5.ed. Brasília: CNBB, 2021.

STRELHOW, Thyeles. A mensagem do profeta Miqueias em defesa da vida. Cadernos da Estef, v. 50, n.1, p. 85-98, jan./jun. 2013.

VITÓRIO, Jaldemir. Fazer teologia com os profetas de Israel: o caso de Miqueias “cheio do Espírito”. Fronteiras revista de teologia da UNICAP. v.5, n.2, p. 417-448, jul./dez.,2022.

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