O Cântico das Criaturas, de São Francisco de Assis, cujo oitavo centenário é celebrado em 2025, expressa poeticamente a fraternidade entre o ser humano e as demais criaturas, a começar pelo “Irmão Sol”.
A fraternidade a ser construída entre o ser humano e as demais criaturas
Frei Oton da Silva Araújo Júnior[1]
Síntese: O Cântico das Criaturas, de São Francisco de Assis, cujo oitavo centenário é celebrado em 2025, expressa poeticamente a fraternidade entre o ser humano e as demais criaturas, a começar pelo “Irmão Sol”. As estrofes finais voltam-se para a condição humana, com destaque para o perdão, a paz e a morte. A presente reflexão busca investigar se a transição do louvor às criaturas do cosmos, nas estrofes iniciais, e a abordagem das realidades humanas, nas estrofes finais, indica uma ruptura no pensamento franciscano ou, ao contrário, revela a profunda interligação de todo o universo criado. O percurso proposto adota uma análise hermenêutica de natureza poética e teológica, ancorada em fontes primárias e na tradição interpretativa franciscana. Parte-se de uma breve consideração sobre a figura de Francisco de Assis, revisitam-se aspectos essenciais do Cântico, com atenção à espiritualidade de caráter familiar, culminando numa reflexão sobre o ser humano, chamado ao perdão, à paz e à aceitação da finitude. A fraternidade, vivida e anunciada por Francisco, configura-se como uma decisão ética, para além dos vínculos biológicos, e um projeto em contínua construção.
Introdução
Os últimos anos de vida de Francisco de Assis foram intensos, com muitos acontecimentos significativos para sua pessoa e para as três Ordens por ele fundadas. Em 1223, três anos antes de seu falecimento, obteve a aprovação definitiva de sua regra de vida, inspirada diretamente na vivência do Evangelho: “A Regra e vida dos Frades Menores é esta: observar o santo Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo, vivendo em obediência, sem propriedade e em castidade” (RB 1,2).[2] Nesse mesmo ano, representou o nascimento de Jesus com personagens reais, inventando assim o presépio. Em setembro do ano seguinte, recebeu os estigmas da Paixão de Cristo, no Monte Alverne. Finalmente, meses antes de sua partida compôs o Cântico das Criaturas, também conhecido como Cântico do Irmão Sol, em cujas estrofes louva a Deus pelas criaturas numa ordem decrescente: a começar pelo sol, a lua e estrelas, o ar e o vento, a água, a terra. Chama a atenção o qualitativo de irmãos e irmãs para cada uma dessas criaturas.
As últimas estrofes do Cântico, no entanto, parecem romper a ordem das anteriores, ao passar do cosmos à perspectiva humana, destacando “aqueles que perdoam” e “os que sustentam a paz”, mas sem chamá-los de irmãos. Por fim, Francisco louva o Senhor por “nossa irmã, a morte corporal” e termina com uma bem-aventurança e um convite a servir ao Senhor com grande humildade.
O recorte desta reflexão quer ressaltar essas últimas estrofes, nas quais Francisco destaca o lugar do ser humano no conjunto da criação, verificando em que medida essas estrofes constituem uma quebra ou uma integração do ser humano perante as demais criaturas.
1. Francisco, poeta da Criação
A relação de Francisco com as criaturas é algo perceptível desde seu processo de conversão, não só nos momentos finais. Após ter iniciado uma “vida de penitência”, Tomás de Celano, seu primeiro hagiógrafo, recorda: “Francisco, vestido com andrajos, aquele que outrora usava escarlate, ao caminhar por um bosque a cantar louvores ao Senhor […] começou a cantar em alta voz os louvores ao Criador de todas as coisas” (1Cel 16,1-4. FFC, p. 208)
E ainda:
Quando encontrava grande quantidade de flores, de tal modo lhes pregava e as convidava ao louvor do Senhor, como se elas fossem dotadas de razão. Assim também, com sinceríssima pureza, admoestava ao amor divino e exortava a generoso louvor os trigais e vinhas, pedras e bosques e todas as coisas belas dos campos, as nascentes das fontes e todo o verde dos jardins, a terra e o fogo, o ar e o vento (1Cel 81,3-5. FFC, p. 252-253).
E prossegue: “Enfim, chamava todas as criaturas com o nome de ir- mão […], como quem já tivesse alcançado a liberdade gloriosa dos filhos de Deus” (1Cel 81,5-6. FFC, p. 253).
São Boaventura diz que Francisco,
Repleto também de piedade mais copiosa pela consideração da origem de todas as coisas, chamava as criaturas, por mais pequeninas que fossem, com os nomes de irmão e de irmã, pelo fato de que sabia que elas tinham com ele um único princípio (LM VII, 6, 1. FFC, p. 603).
No dizer de Chesterton (+1936), pensador franciscano, o Cântico as Criaturas “é uma obra extraordinariamente característica. Poder-se-ia construir muito da personalidade de São Francisco somente com esta obra” (apud Merino, 1999, p. 216).
Compreender o Cântico do Irmão Sol, ou Cântico das Criaturas, não exige identificar um local ou momento exato de sua origem, pois ele brota do horizonte espiritual de Francisco de Assis e da alegria que o preenchia. Francisco era um ser harmonioso, cuja vida refletia musicalidade e paz interior. Os elementos da natureza eram expressões externas do que já pulsava em seu coração, numa notável coerência entre suas palavras e sua vida.
Duas informações são importantes a respeito de Francisco, antes de nos deter ao Cântico das Criaturas. A primeira, diz respeito à sua saúde: Francisco nunca fora muito saudável. Ao longo da vida, sempre apresentou sintomas leves ou severos, indicando que seu corpo necessitava de cuidados, o que ele nem sempre consentia. As Compilações de Assis destacam: “Francisco sempre esteve enfermo, e se tornava a cada dia mais enfermo até ao dia de sua morte” (CA 92,35. FFC, p. 959).
A segunda recordação é sobre seu modo de rezar, caracterizado muito mais pelo louvor do que pela petição. Praticamente não se encontram petições em seus escritos. Perante a magnitude e bondade divinas, o Santo não faz outra coisa do que louvar ao Senhor. No fim de sua vida, repete aquilo que sempre fez!
Na vida de Francisco, conhecemos sua paixão pela música e pela poesia, desde a juventude. Esse traço de sua personalidade ele nunca perdeu, mesmo depois de sua conversão. Tomás de Celano, em 1228, ressaltou o tempo precedente à conversão de Francisco, dizendo que ele e seus companheiros, à noite, perturbavam o sono dos habitantes de Assis “com cantigas de ébrios pelas praças da cidade” (2Cel 7,7. FFC, p. 305); e na Legenda dos Três Companheiros lemos que Francisco se abandonava apaixonadamente “aos divertimentos e aos cânticos, per- correndo a cidade de Assis de dia e de noite em companhia dos que eram iguais a ele” (LTC 2,3. FFC, p. 790).
De vez em quando, como vi com os [meus próprios] olhos, – diz Celano – ele colhia do chão um pedaço de pau e, colocando-o sobre o braço esquerdo, mantinha um pequeno arco curvado por um fio na mão direita, puxando-o sobre o pedaço de pau como sobre um violino e, apresentando para isto movimentos próprios, cantava em francês [cânticos] sobre o Senhor (2Cel 127,3. FFC, p. 382).
As imagens do sol, da lua, das estrelas, do ar, da água, do fogo e da terra, ao mesmo tempo que assinalam e simbolizam um sentido mais profundo, conduzem também ao interior de Francisco, pois as imagens evocam também imagens poéticas e arquetípicas do inconsciente. O sincero encontro com o mundo pressupõe um encontro consigo mesmo, já que a intencionalidade do sujeito se projeta no mundo como em seu complemento; e, ao descobrir o sagrado no universo, o próprio espírito humano revela sua semelhança. “O cosmo e a psique são os dois polos de uma mesma expressividade; eu me autoexpresso ao expressar o mundo; eu exploro minha própria sacralidade ao tentar decifrar o mundo” (Merino, 1999, p. 220).
Para o homem moderno, só o homem é irmão do homem, enquanto todas as outras criaturas pertencem ao mundo de objetos que podemos manipular, utilizar e dominar à vontade. A ciência, ao reduzir nossa visão de mundo unicamente ao quantitativo e imensurável, habituou-nos a considerar a natureza como um campo de objetos. De um lado, lidamos com as pessoas; de outro, com objetos da natureza. E, desse modo, estabelecemos uma separação radical, apelando para a transcendência espiritual que somos.
Uma postura de dominação do ser humano em relação à natureza revela, a um só tempo, uma atitude de respeito e empatia para com seus semelhantes, mas também uma postura de agressividade, conquista e subjugação diante do conjunto da criação, sobre a qual se considera superior (cf. Leclerc, 1999, p. 179).
O olhar de Francisco não concebe a natureza como objeto. Sua vida e seus escritos apontam para um ser humano integrado às demais cria- turas, que se sente parte do universo criado e reconhece a presença do Senhor Deus em todas as criaturas.
Reprisemos o conjunto do Cântico, a fim de tentar compreender o valor que Francisco dá a cada criatura e a relação destas com o Senhor Deus. Num segundo momento, refletiremos sobre suas estrofes finais.
2. O Louvor das Criaturas
O Cântico das Criaturas se inicia com o qualitativo “Altíssimo”, referente a Deus. Este termo se repete por quatro vezes no Cântico, sendo que só nas duas primeiras estrofes aparece três vezes:
Altíssimo, onipotente, bom Senhor, teus são o louvor, a glória, a honra e toda a bênção. Só a ti, Altíssimo, são devidos; (…). Louvado sejas, meu Senhor, com todas as tuas criaturas, especialmente o Senhor Irmão Sol, (…) de ti, Altíssimo é a imagem (Cnt 1-4).
Francisco demonstra toda sua reverência ao enfatizar que ninguém é digno de nomear a Deus, o que nos faz lembrar as disposições bíblicas ao alertarem que o nome do Senhor é impronunciável (Ex 20,7). A palavra que Francisco utiliza nesse caso é mentovare, que deriva de mente: é como se ninguém fosse digno sequer de elevar o pensamento ao Senhor (cf. Matos, 2012).
Deve-se dar atenção à universalidade e ao possessivo nestas estrofes: “Todas as tuas criaturas”: não exclui criatura alguma. Sua louvação, diferente de outras tradições ascéticas de seu tempo, não pensa em ter de abandonar o mundo para poder louvar a Deus. Pelo contrário: louva a Deus mediante as criaturas. Quanto ao possessivo tuas ressalta que as criaturas são de Deus, pertencem somente a Ele, não ao ser humano ou a qualquer outro possuidor.
O Cântico das Criaturas manifesta uma preferência pelas imagens de luz: em primeiro lugar, está a imagem fulgurante do “irmão Sol”; em seguida, vêm as imagens da “irmã Lua e das Estrelas”, que também são imagens de luz: “claras, preciosas e belas”. No caso da lua, é preciso considerar toda sua significação, sobretudo para as culturas antigas, agrárias, para as quais a lua ditava a ordem do tempo, a vivência religiosa, além de influenciar nas plantações e na pesca.
O homem coroado pelo Altíssimo é o homem solar, misericordioso para com toda a criatura. Como o sol, ele brilha sobre todos com grande esplendor. Como o sol, ele é símbolo do Altíssimo, oferecendo a todos essa presença total e esse total dom de si, que não são outra coisa senão a expressão da presença e do dom que Deus faz de si mesmo a cada instante e a todos os seres (Leclerc, 1999, p. 185).
Francisco utiliza um adjetivo curioso ao se referir à lua e às estrelas, depois também à água: essas criaturas são “preciosas”. Ora, no senso comum, algo precioso tem a ver com tesouro, como as pedras preciosas.
Em seus escritos, Francisco utiliza a palavra “precioso” para se referir aos objetos relacionados ao mistério eucarístico: “E quero que estes santíssimos mistérios sejam honrados e venerados acima de tudo em lugares preciosos” (Test 11. FFC, p. 189). Ou seja, ao qualificar a lua, as estrelas e a água como criaturas preciosas, o Poverello as relaciona como pertencentes a um grande tesouro, o mistério divino. “O Sagrado é celebrado aqui em um elemento do mundo. Essa celebração do Sagrado no Cosmos faz eco à sua revelação na alma. É a linguagem simbólica de uma profunda Revelação” (Leclerc, 1999, p. 116).
Na estrofe seguinte, Francisco se refere ao vento e à água. Esses dois elementos também aparecem juntos em várias passagens da Escritura: “O espírito de Deus movia-se sobre as águas” (Gn 1,2); “derramarei sobre vós uma água pura e, porei novo espírito no meio de vós” (Ez 36,25-26). “E quem não nascer da água e do espírito não pode entrar no Reino de Deus” (Jo 3,5). Quanto ao vento, em particular, Francisco não lhe confere nenhum qualificativo.
Ainda sobre a água, é preciso considerar todos os atributos citados no Cântico: a irmã água é muito útil, humilde, preciosa (eis o termo novamente!) e casta. O que é verdadeiramente preciosa aos olhos é a realidade sagrada, e designa ainda algo de grande valor, um tesouro, mas que escapa do domínio da posse (cf. Leclerc, 1999, p. 24). O Santo de Assis não quer possuí-las ou dominá-las, mas chama-as pelo nome, convidando-as a render louvores a Deus, que as revestiu de beleza e de bondade.
Em relação ao fogo, é costume relacionar a composição dessa estrofe à enfermidade que Francisco tinha nos olhos, devendo ser submetido a uma cauterização das têmporas, mediante um ferro em brasas. Tomás de Celano assim descreve o pedido de Francisco:
Meu irmão fogo, o Altíssimo te criou forte, belo e útil, [dotado] de beleza de causar inveja às demais criaturas. Sê-me propício nesta hora, sê cortês! Porque há muito tempo que te amo no Senhor. Suplico ao grande Senhor que te criou que modere agora o teu calor, para que eu possa suportar-te enquanto [me] queimas suavemente (2Cel CXXV, 166, 5-7. FFC, p. 405).
Se o Cântico das Criaturas parece ter um movimento descendente, desde o sol, o último elemento a que o Santo se refere é à Terra, com dois qualitativos muito especiais: ela é mãe e irmã. Dela, Francisco recorda o sustento, o governo, os frutos, as flores e ervas. A Terra constitui
o humanum em sua fragilidade e em sua fecundidade. O homem se encontra com seu ser Adão, posto no Paraíso de Deus, na plena fruição e beleza da vida.
O Papa Francisco conclui a esse respeito:
Tudo está relacionado, e todos nós, seres humanos, caminhamos juntos como irmãos e irmãs numa peregrinação maravilhosa, entrelaçados pelo amor que Deus tem a cada uma das suas criaturas e que nos une também, com terna afeição, ao irmão sol, à irmã lua, ao irmão rio e à mãe terra (2015, n. 92).
3. Francisco e a espiritualidade familiar
O modelo familiar, especialmente a relação da mãe com seus filhos, é para Francisco de Assis uma fonte de inspiração para o ideal de vida espiritual que propõe a seus frades. Ele deseja que o cuidado entre os irmãos seja baseado nesse afeto materno. Por isso, orienta: “E com segurança manifeste um ao outro sua necessidade, para que encontre o que lhe é necessário e o sirva. E cada um ame e nutra seu irmão, como a mãe ama e nutre seu filho, naquilo em que Deus lhe der a graça” (RnB 9,10-11, FFC p. 172).
Na Regra para Eremitérios, escrita entre 1218 e 1221, Francisco sugere que aqueles que desejam viver religiosamente nos eremitérios formem pequenos grupos de três ou quatro irmãos. Entre eles, dois devem ser as “mães” e os outros dois, ou pelo menos um, os “filhos”. Os que exercem a função materna assumem a vida ativa de Marta, enquanto os “filhos” se dedicam à vida contemplativa de Maria (cf. RE 1-2. FFC, p. 186).
O Santo de Assis também adota essa postura materna em suas relações pessoais. Em uma carta a seu fiel companheiro Leão, escreve:
Assim te digo, meu filho, como uma mãe: porque todas as palavras que dissemos no caminho, quero dispor em breve essas palavras e aconselho, e se depois te parecer oportuno vir a mim por causa de conselho […] que o faças com a bênção de Deus e a minha obediência (Le. FFC, p. 119).
A convivência fraterna do dia a dia reflete o mistério divino da Encarnação, que faz de Deus um membro da família humana. Francisco escreve:
Somos esposos, quando a alma fiel se une pelo Espírito Santo a Nosso Senhor Jesus Cristo. Somos seus irmãos, quando fazemos a vontade do
Pai que está nos céus. Somos suas mães, quando o trazemos em nosso coração e em nosso corpo através do amor divino e da consciência pura e sincera; damo-lo à luz por santa operação que deve brilhar como exemplo para os outros (1Fi 8-10. FFC, p. 111).
Para Francisco, a família de Deus não é composta apenas por seres humanos: até as virtudes mantêm entre si laços familiares. Ele as aclama:
Ave, rainha sabedoria, o Senhor te salve com tua irmã, a santa e pura simplicidade. Senhora santa pobreza, o Senhor te salve com tua irmã, a santa humildade. Senhora santa caridade, o Senhor te salve com a tua irmã, a santa obediência. Santíssimas virtudes todas, salve-vos o Senhor de quem vindes e procedeis. (SV 1-4. FFC, p. 187)
Segundo Matura, o Poverello tem uma intuição genial ao reconhecer nos seres inanimados um parentesco semelhante ao sanguíneo. Para ele, chamar os elementos da criação de “irmão” e “irmã” não é apenas uma expressão de ternura, mas o reconhecimento de uma origem comum, da mesma matéria (2002, p. 194). Com isso, revela como compreende a vida daqueles que caminham com o Senhor: não sob o peso austero da penitência que os torna meros cumpridores infelizes de deveres, mas como pessoas livres e altivos, vivendo uma espiritualidade marcada pelo amor fraterno, em sintonia com os sonhos do Criador. As núpcias do Cordeiro já se anunciam (Ap 21,2), todos se unem como membros de uma só família. Por isso, recomenda: “E cuidem para não se mostrar exteriormente tristes e sombriamente hipócritas; mas mostrem-se alegres no Senhor, sorridentes, agradáveis e convenientemente simpáticos” (RnB 7,16. FFC, p. 133).
4. Francisco e a fraternidade a ser inventada
Uma leitura apressada pode não perceber a distinção significativa que Francisco estabelece entre as criaturas não humanas, às quais se refere como “irmãs”, e o ser humano, que é mencionado de forma diversa, sem que lhe seja atribuída essa relação de parentesco. Enquanto as criaturas cósmicas são designadas como “irmão sol”, “irmã lua” e “irmã terra”, os seres humanos são simplesmente caracterizados como “os que perdoam” e “os que sustentam a paz”.
Essas estrofes foram acrescentadas devido a questões específicas presenciadas pelo Santo e nas quais ele se pôs como mediador no conflito entre o bispo de Assis e o podestà da cidade (prefeito). Quer dizer, enquanto o hino original brota de uma harmonia cósmica e de uma paz gozosa, esta estrofe surge de um conflito humano que contrasta existencialmente com as anteriores.
O Cântico adquire com isso uma dimensão antropológica e uma grandeza mais humana, pois, enquanto as coisas se encontram com a harmonia já feita e estabelecida, os homens têm o destino de criá-la, de torná-la possível e de inventá-la. Neste canto excepcional, sintetizam-se em uma inquietude o idílio cósmico e a tragédia humana (Merino, 1999, p. 224).
Chesterton afirma, com humor, que Francisco era tão atento ao indivíduo que a “árvore ocultava a floresta”: ele via cada pessoa como única, com história e vocação próprias, digna de amor singular. Sua saudação (“O Senhor te dê a paz”) revelava um profundo desejo de reconciliação e harmonia, indo além da cortesia. Para Francisco, a verdadeira paz era o restabelecimento da amizade com Deus, refletida também nas relações humanas e na reconciliação interior. Seu amor pelas pessoas era expressão de seu amor por Cristo. Segundo Tomás de Celano, sua empatia natural já o fazia irmão de todas as criaturas; por amor a Cristo, tornou-se ainda mais irmão dos homens (cf. Leclerc, 1999, p. 176).
Ao refletir sobre o amor na família, o Papa Francisco indicou a importância do ser irmão. A partir da família, alimentada pelos afetos e pela educação familiar, o estilo da fraternidade irradia-se como uma promessa sobre a sociedade inteira.
Crescer entre irmãos proporciona a bela experiência de cuidar uns dos outros, de ajudar e ser ajudado. […] Faz falta reconhecer que ter um irmão, uma irmã que te ama é uma experiência forte, inestimável, insubstituível, mas é preciso ensinar, com paciência, os filhos a tratar-se como irmãos. Esta aprendizagem, por vezes fadigosa, é uma verdadeira escola de sociabilidade (Francisco, 2016, n. 195).
O fato de Francisco não se referir ao ser humano como irmão, ao contrário das demais criaturas, nos faz elucubrar que, de fato, a fraternidade entre humanos não seja um dado óbvio, mas uma realidade a ser construída. André Wénin, ao refletir sobre “a invenção da fraternidade”, seguindo o pensamento de Paul Ricœur, afirma que a fraternidade se caracteriza como um projeto ético e não tanto um simples dado da natureza (cf. Wénin, 2011, p. 20).
Wénin propõe uma análise da história de José do Egito, com especial atenção às relações fraternas e ao vínculo com seu pai, Jacó. Para contextualizar adequadamente essa narrativa, o autor recorre a outros exemplos bíblicos de relações entre irmãos que, embora unidos por laços de sangue, não manifestam atitudes de afeto ou solidariedade. Ao contrário, diversas passagens das Escrituras evidenciam relações per- meadas por rivalidade, inveja e até traição entre irmãos. Desde os pri- meiros relatos bíblicos, observa-se que os irmãos biológicos, em vez de viverem em harmonia, frequentemente se enfrentam. O exemplo mais emblemático encontra-se logo no livro do Gênesis: Caim, o primogêni- to, que segundo a tradição deveria proteger o irmão mais novo, termina por assassiná-lo de forma premeditada, numa gravidade remete simbo- licamente à própria perda do Paraíso (Gn 4,1-16).
Esta breve narrativa de Caim mostra, desde as primeiras páginas do Gênesis, a questão de uma fraternidade difícil, desde o início compro- metida por antecedentes do lado parental e incessantemente ameaçada pela inveja e pelo ciúme. Como se quisesse alertar o leitor de que a fraternidade não vem naturalmente porque, para ser construída, deve atravessar a prova da cobiça e inveja e ciúme ao mesmo tempo (Wénin, 2011, p. 20).
Em outras palavras, o dado biológico por si só não é o garantidor da fraternidade. Será preciso uma disposição ética em ver as pessoas e, de um modo franciscano, as demais criaturas, como irmãs e irmãos. É preciso fazer-se irmão, mostrar-se concretamente irmanado, o que trará como consequências práticas a proximidade, o cuidado, o afeto gratuito.
No Novo Testamento, para darmos somente um exemplo, podemos recordar a parábola do filho pródigo, na qual, o irmão mais velho, ao perceber o barulho da festa para o irmão que voltara, reclama com o pai seus direitos dizendo: “quando volta para casa esse ‘teu filho’ [não diz ‘meu irmão’], que esbanjou os teus bens com as prostitutas, matas o novilho gordo para ele!” (Lc 15,30). Ou seja: apesar de serem irmãos biologicamente, fica nítido que não há irmandade entre eles.
A análise de Wénin se concentra na extensa narrativa sobre José do Egito, cuja trama é desencadeada pela inveja dos irmãos, motivada pelo amor especial que Jacó dedica ao caçula. Inicialmente, os irmãos planejam matar José, mas optam por uma solução “menos extrema”: lançá-lo em uma cisterna vazia e, posteriormente, vendê-lo a mercadores ismaelitas que o levam ao Egito. Esse episódio marca o início de uma complexa sequência de eventos relacionados à negociação de grãos, que culminará, anos mais tarde, na reconciliação entre os irmãos.
O referido Autor vê aqui um vínculo direto com o episódio de Caim e Abel.
Porventura não é, neste caso, um “animal feroz” que leva os irmãos a matar José? Falando com Caim (4,7), Deus compara seu ódio ciumento, que o leva a matar o irmão, a um animal agachado que domina o assassino transformando-o numa fera (Homo homini lupus) (Wénin, 2011, p. 55).
Se é assim, ao pôr seu crime na conta de uma fera, os irmãos admitem, sem saber, que é a inveja que os torna ferozes contra seu irmão, a ponto de quererem matá-lo e fazê-lo desaparecer por completo. Além disso, jogar o corpo num buraco equivale a um sepultamento desrespeitoso.
Nessa perspectiva, podemos vislumbrar no Cântico das Criaturas um Francisco de Assis que entende a fraternidade humana como um projeto em construção. A questão a se verificar é se nossas motivações éticas são robustas o suficiente para nos tornar verdadeiramente irmãos. Enquanto isso não se concretiza, viver em paz, sem agressões nem destruição mútua, já será um começo promissor. Quem sabe, no futuro, possamos finalmente nos reconhecer como irmãos!
5. A irmã morte corporal
Por fim, a morte, abraçada não como um absurdo, um trauma, mas como coroamento sereno de uma vida doada, como foi propriamente a vida de Francisco. Em Assis, duas décadas antes, ele ficara nu em praça pública para romper com seu pai; agora, pede para ser posto nu sobre a terra nua, para romper com esta existência limitada, e abraçar a eternidade.
As cotovias, que são amigas da luz e detestam as trevas dos crepúsculos, na hora do trânsito do santo homem, sendo que o crepúsculo da noite já estava iminente, chegaram em grande multidão sobre o teto da casa e, rodeando longamente com uma insólita jubilação, davam testemunho alegre e evidente da glória do santo que costumava convidá-las ao louvor divino (LM XIV, 6,9. FFC, p. 646).
Acolher a morte como irmã de forma tranquila indica que o humano atingiu o último estágio da existência, um sentimento de missão cumprida. Mas, da mesma forma em que não nos basta viver, mas dar a razão e significação à existência, assim também ocorre com o morrer: é preciso significar este acontecimento. Era o que alertava João Paulo II:
No fundo de cada sofrimento experimentado pelo homem, como também na base de todo o mundo dos sofrimentos, aparece inevitavelmente a pergunta: por quê? É uma pergunta acerca da causa, da razão e também acerca da finalidade (para quê?); trata-se sempre, afinal, de uma pergunta acerca do sentido. Esta não só acompanha o sofrimento humano, mas parece até determinar o seu conteúdo humano, o que faz com que o sofrimento seja propriamente sofrimento humano (1984, n. 9).
Quanto à morte, nem sempre é possível vê-la como uma “irmã”, de modo romântico. Existem mortes precoces, violentas e injustas que precisam ser denunciadas e amparadas, e suas causas devidamente identificadas a fim de prevenir novas tragédias. Já para Francisco de Assis, a morte é inevitável (“da qual homem algum poderá escapar”), mas também é a porta para o encontro definitivo com Aquele que triunfou sobre a morte.
Num certo dia, um irmão disse ao bem-aventurado Francisco: “Pai, tua vida e modo de ser foi e é luz e espelho não só para os teus irmãos, mas também para toda a Igreja de Deus, e tua morte o será igualmente, por- que, embora tua morte seja [causa de] dor e tristeza para teus irmãos e para muitos outros, no entanto, para ti será a maior consolação e júbilo infinito, pois que passarás de muita fadiga ao maior repouso, de muitas dores e provações ao júbilo infinito, de tua grande pobreza – que sempre amaste e suportaste voluntariamente desde o início de tua conversão até ao dia de tua morte – às maiores, verdadeiras e infinitas riquezas, da morte temporal à vida eterna, onde verás sempre o Senhor teu Deus face a face, a quem com tanto fervor, desejo e amor contemplaste neste mundo” (CA 7,1-4. FFC, p. 843).
A última estrofe do Cântico das Criaturas emerge do âmago do autor quando ele se dá conta de que sua jornada terrena se aproxima do término, e que a inevitável realidade da morte se torna evidente. Ainda assim, é justamente nesse instante que se celebra, de modo comovente, a vitória da vida sobre a morte. Mais uma vez, o canto nasce de uma experiência marcada pela dor, imposta pela finitude da existência corpórea.
Essas estrofes finais revelam o tom dramático que permeia a condição humana: o desafio de viver em meio à aparente impossibilidade de convivência e o enfrentamento dos próprios limites existenciais. Contudo, Francisco soube transcender a dor, os conflitos e a dramaticidade da vida, guiado por sua profunda fé em Deus e por sua percepção da beleza da criação. Seu amor pelo Criador e por todas as criaturas conduziu-o
a reconhecer-se, com alegria, como filho e irmão. Assim, o Cântico das Criaturas transforma-se em uma autêntica expressão de reconciliação profunda: com Deus, com o próximo, com a natureza e com o tempo, que, a partir de então, se abre à eternidade (cf. Merino, 1999, p. 226).
Considerações finais
As estrofes finais do Cântico das Criaturas, ao se referirem ao ser humano, não fazem uma ruptura com as anteriores. Pelo contrário, elas integram plenamente as experiências humanas como o conflito, o perdão, a paz e a finitude, ao contexto mais amplo da criação. A condição humana, com toda a sua complexidade, é apresentada como parte integrante da natureza, e não separada dessa.
Diferentemente do paradigma da modernidade, que realça o antropocentrismo, na visão de Francisco de Assis, o ser humano não se destaca do conjunto da criação ou se põe acima deste. Ao contrário: encontra-se integrado com as demais criaturas, sendo possível chamá-las de irmãs. Com as demais criaturas o ser humano se sente em casa. Assim, ele não é um intruso no universo, mas uma criatura nobre, central na criação, onde se concentram sentido, beleza e finalidade (cf. Merino, 1999, p. 232).
Francisco de Assis ensina a considerar a obra criada fora de uma visão utilitarista. Francisco de Roma, há pouco falecido, tinha a mesma intuição:
Se a terra nos é dada, não podemos pensar apenas a partir dum critério utilitarista de eficiência e produtividade para lucro individual. Não estamos falando de uma atitude opcional, mas duma questão essencial de justiça, pois a terra que recebemos pertence também àqueles que hão de vir (2015, n. 159).
O Cântico das Criaturas, ao celebrar a grande fraternidade cósmica, se estende também à exaltação do perdão e da construção da paz. A visão franciscana de um universo fraterno não é uma lembrança nostálgica de um paraíso perdido. Trata-se, antes, de uma perspectiva que afirma o primado da reconciliação sobre a ruptura, da unidade sobre a divisão.
Desse modo, o Cântico é a expressão de uma conversão radical. “O centro de gravidade da existência se deslocou, não se situa mais no eu, nem nos interesses particulares do eu. Ainda que fossem espirituais, situam-se no mistério do ser” (Leclerc, 1999, p. 190). O Papa Fran- cisco, na esteira do Santo de Assis, convidou a essa conversão do olhar:
Prestar atenção à beleza e amá-la ajuda-nos a sair do pragmatismo utilitarista. Quando não se aprende a parar a fim de admirar e apreciar o que é belo, não surpreende que tudo se transforme em objeto de uso e abuso sem escrúpulos. Ao mesmo tempo, se se quer conseguir mudanças pro- fundas, é preciso ter presente que os modelos de pensamento influem realmente nos comportamentos (2015, n. 215).
Reconhecer-se como irmão e empenhar-se por viver em fraternidade é uma tarefa que está sempre em construção. É inevitável que essa relação traga desafios e consequências, pois a vida compartilhada, apesar de proporcionar beleza e prazer, é também a concretização de uma vida celebrada e dedicada ao bem-estar da nossa família mais ampla: a criação em seu conjunto, como tão bem destacou o Santo de Assis.
Referências
FRANCISCO, Papa. Encíclica Laudato Si’: sobre o cuidado da casa co- mum, 2015. Disponível em: https://www.vatican.va/content/frances- co/pt/encyclicals/documents/papa-francesco_20150524_enciclica-lau- dato-si.html. Acesso em: 24 maio 2025.
FRANCISCO, Papa. Exortação Apostólica pós-sinodal Amoris Laetitia: sobre o amor na família, 2016. Disponível em: https://www.vatican. va/content/francesco/pt/apost_exhortations/documents/papa-frances- co_esortazione-ap_20160319_amoris-laetitia.html#_ftnref220. Acesso em: 25 maio 2025.
JOÃO PAULO II, Papa. Carta Apostólica Salvifici Doloris: sobre o sen- tido cristão do sofrimento humano, 1984. Disponível em: https://www. vatican.va/content/john-paul-ii/pt/apost_letters/1984/documents/hf_ jp-ii_apl_11021984_salvifici-doloris.html. Acesso em: 24 maio 2025.
LECLERC, E. O Cântico das Criaturas: os símbolos da união. Petrópo- lis: Vozes, 1999.
MATOS, A. Cântico das Criaturas, recanto das letras [2012]. Disponí- vel em: https://www.recantodasletras.com.br/teorialiteraria/4020813. Acesso em: 24 maio 2025.
MATURA, T. Francisco de Assis: mensagem de seus escritos. Braga: Edi- torial Franciscana, 2002.
MERINO, J.A. Humanismo franciscano: franciscanismo e mundo atual, Petrópolis: FFB, 1999.
TEIXEIRA, C.M. (org.). Fontes franciscanas e clarianas. Petrópolis: Vo- zes, 2004 [FFC].
TOMÁS DE CELANO. Primeira vida [1Cel]. In: TEIXEIRA, C.M.
(org.). Fontes franciscanas e clarianas. Petrópolis: Vozes, 2004. p. 197-299.
TOMÁS DE CELANO. Segunda vida [2Cel]. In: TEIXEIRA, C.M.
(org.). Fontes franciscanas e clarianas. Petrópolis: Vozes, 2004. p. 300-441.
WÉNIN, A. José ou a invenção da fraternidade: leitura narrativa e antropológica de Gênesis 37-50. São Paulo: Loyola, 2011.
Artigo recebido em: 27 abr. 2025
Aprovado em: 28 jul. 2025
[1] Pertence à Ordem dos Frades Menores, Província Santa Cruz (Minas Gerais). Doutor em Teologia Moral pela Pontifícia Universidade Lateranense (Accademia Alfonsiana, Roma). Membro da Equipe Interdisciplinar da CRB Nacional e do Serviço de Proteção da CRB Nacional. Diretor Pedagógico do Colégio Santo Antônio, em Belo Horizonte, MG. E-mail: [email protected]
[2] Abreviações [todos os textos referidos se encontram em TEIXEIRA (org.), Fontes Franciscanas e Clarianas, Petrópolis: Vozes, 2004. Os textos seguem indicados como FFC]: CA = Compilação de Assis; Cnt = Cântico das Criaturas ou Louvores das Criaturas ou Cântico do Irmão Sol (de são Francis- co); FFC = Fontes Franciscanas e Clareanas; Le = Carta a Frei Leão (de são Francisco); LM = Legenda Maior (de Boaventura de Bagnoregio); LP = Legenda perugina; LTC = Legenda dos três companheiros; RB = Regra bulada (de são Francisco); RE = Regra para eremitérios (de são Francisco); Rnb = Regra não bulada (de são Francisco); SV = Saudação às virtudes (de são Francisco); Test = Testamento (de São Francisco); 1Cel = Tomás de Celano: Primeira Vida; 1Fi = Carta aos fiéis (1ª recensão) (de são Francis- co); 2Cel = Tomás de Celano: Segunda Vida.