Capítulo I – Em nome do Senhor! Começa a regra de vida dos Frades Menores

Capítulo I – Em nome do Senhor! Começa a regra de vida dos Frades Menores

A Regra e a vida dos Frades Menores é esta: observar o santo Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo, vivendo em obediência, sem propriedade e em castidade.

Frei Hilton Farias de Souza, ofm

A Regra e a vida dos Frades Menores é esta: observar o santo Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo, vivendo em obediência, sem propriedade e em castidade. Frei Francisco promete obediência e reverência ao Senhor Papa Honório e a seus sucessores canonicamente eleitos e à Igreja Romana. E os demais irmãos estejam obrigados a obedecer a Frei Francisco e a seus sucessores.

O autor Giulio Mancini, comentando o início desse capítulo, assim se expressa: “Proclamada a fé no poder do Santo Nome, se abre imediatamente o Incipit: é o título geral da Regra. E imediatamente, a originalidade constitutiva. Não começa a Regra, mas a Vida! ‘A vida do Evangelho’ já era o termo da Forma Vitae (RnB 2). A descrição, diríamos, do modo de viver, um programa de vida ‘dos Frades Menores’. Os frades não são menores da Comuna de Assis, mas como os menores do Evangelho! Viver e agir como menores, um com o outro; isso nos une a todos aos outros” (p. 141).

“Observar o santo Evangelho”, para Francisco e os seus primeiros companheiros e também para nós, essa frase trata da essência carismática do Movimento/Ordem. É um texto fundante, que fez com que Francisco, no momento inicial do seu processo vocacional, descobrisse aquilo que buscava na liturgia, de modo especial no texto do Evangelho.

Na RnB se falava de “seguir a doutrina e o exemplo de Nosso Senhor Jesus Cristo”; na RB se diz de forma lapidar: “Observar o santo Evangelho”, que é o primeiro princípio base, unido aos três conselhos evangélicos, já presente nas novas Ordens. É curioso que a pobreza se chama de sine proprio, sem nada de próprio, e é colocada entre a obediência e a castidade (Cf. Mancini, p. 142).

RB 1, 2-3 – É uma promessa à Sede Apostólica; ou seja, observar a Forma de Vida do santo Evangelho, mas na Forma de Vida católica da Igreja Romana. Francisco nesse momento, não sendo mais Ministro Geral, mas como chefe, faz o pedido, e responsável é aquele que garante a catolicidade e a obediência da sua Ordem. E a Sede Apostólica, na pessoa de Papa Honório, confirma a Regra, aprovada pelo predecessor Inocêncio III. Os frades respondem em obediência a ele.

Santo Evangelho e Santa Igreja católica marcam o texto da Regra até o capítulo 12, onde podemos perceber na expressão que retorna – “sempre súditos e submissos aos pés da mesma santa Igreja e estáveis na fé católica, observemos a pobreza e a humildade e o santo Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo que firmemente prometemos”. São assim delineadas as duas opções de base nas quais atua a fraternidade por ser franciscana ao longo da história.

Esse primeiro capítulo da Regra Bulada contém a síntese de tudo o que Francisco quer dizer aos seus irmãos. Ele apresenta os princípios fundamentais relacionados a toda a Regra. Os onze capítulos que seguem vão desenvolver os diversos elementos concretos da fraternidade, integrando-os na realidade eclesial. No final do capítulo 12, encontramos uma frase que sintetiza, por assim dizer, a nossa espiritualidade e meta: “observemos a pobreza e a humildade e o santo Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo que firmemente prometemos”.

O primeiro capítulo da nossa Regra pode ser esquematizado da seguinte maneira:

A. Uma vida;

B. Uma vida segundo o Evangelho;

C. Uma vida segundo o Evangelho e em comunhão com a Igreja.

A. UMA VIDA

Nos primórdios da nossa Ordem, não sobressaiu em primeiro lugar uma Regra, mas uma modalidade toda singular de vida cristã em comunhão com a Igreja, uma maneira cristã de encarar a existência. No próprio Testamento, Francisco diz: “E aqueles que vinham assumir esta vida davam aos pobres tudo o que podiam ter; e estavam contentes com uma única túnica, remendada por dentro e por fora, com o cordão e os calções. E mais não queríamos ter” (Test, 16-17).

Nossa Ordem é realmente um viver em comum, uma verdadeira comunhão de vida entre os irmãos na Igreja. Francisco considerava os Frades Menores como membros de uma só família, como a imagem que ele usa para expressar isso, “E com confiança um manifeste ao outro a sua necessidade, porque, se a mãe nutre e ama a seu filho carnal, quanto mais diligentemente não deve cada um amar e nutrir a seu irmão espiritual?”  (RB, 6, 9).

Nossa Ordem não é um agrupamento religioso, no qual se congregam pessoas que desejam alcançar mais facilmente um objetivo comum ou status social, mediante um trabalho. A vida franciscana nasce de um carisma singular que Francisco recebera de Deus. Para Francisco, Vida e Regra são termos sinônimos. Ensinava que os frades deviam tê-las diante dos olhos como exortação (Cf. 2 Cel, 208).

B. UMA VIDA SEGUNDO O EVANGELHO

Desde o início do seu Movimento, Francisco considerava sua vida e a dos irmãos como uma vida marcada pelo Evangelho, como “Vida do Evangelho” (Cf. Test, 14). É interessante que, na pequena Forma de Vida que enviou para as Irmãs Pobres de São Damião, ele indica que elas vivessem “segundo a perfeição do santo Evangelho”. Levar uma “vida segundo o Evangelho” era, naquela época, o ideal de muitos cristãos que tomavam a sério o cristianismo. Todos entendiam, com isso, a obrigação de viver na maior pobreza possível, ganhando o pão com o trabalho das próprias mãos e, quando necessário, mendigando como todos os pobres. Todos também se vestiam com simplicidade e em tudo se contentavam com o que podiam conseguir. Procuravam servir ao Reino de Deus através da pregação contínua, de sorte que muitos percorriam as regiões como pregadores ambulantes.

Muitos desses pregadores ambulantes e dos seus grupos mandavam inclusive traduzir o Novo Testamento em língua “vulgar”, para poderem propor mais fielmente a doutrina do Senhor no Evangelho e o exemplo dos apóstolos. Vários grupos entraram em atrito com a Igreja e acabaram na heresia. Mesmo que tivesse elementos em comum com esses grupos, Francisco se distinguia deles por duas características: o Evangelho não era para ele uma doutrina em que ele se agarrasse fanaticamente, mas testemunho de vida de Jesus; como o próprio Francisco expressou na sua primeira Admoestação citando o evangelista São João: “eu sou o caminho, a verdade e a vida”. O outro elemento era a consciência clara de comunhão com a Igreja, como expressa nesse capítulo I, em que Francisco deixa nítido que quer “obediência e reverência ao Senhor Papa Honório e aos seus sucessores canonicamente eleitos e à Igreja Romana”.

C. UMA VIDA SEGUNDO O EVANGELHO E EM COMUNHÃO COM A IGREJA

Desde o início, Francisco quer prestar obediência ao Senhor Papa e aos seus sucessores. Parece que Francisco tinha clareza dos problemas cometidos pelos movimentos heréticos de sua época, principalmente quanto à submissão à Igreja de Roma: “[…] e encontrasse sacerdotes pobrezinhos deste mundo, não quero pregar nas paróquias em que eles moram, passando por cima da vontade deles” (Test. 7). O primeiro capítulo da Regra parece insinuar que Francisco, de certo modo, via nos três votos o elemento essencial de uma vida segundo o Evangelho. Três votos significam a radicalidade da qual a agente quer viver o Evangelho. É renúncia.

Francisco escolhe, no primeiro capítulo da Regra, uma denominação para seus irmãos, fato também inédito na história das instituições monásticas. Até então, as várias formas de monaquismo se distinguiam, quer pela cor do hábito, monges negros ou brancos (Beneditinos, Premonstratenses), quer pelo nome do fundador – Beneditinos (Bento de Núrcia) –, quer pelo mosteiro de origem – Cartuxos (Chartreusse), Cistercienses (Citeaux), Premonstratenses (Premontré). Mas para nós vem o nome determinado: “Frades Menores”. Exprime algo mais do que uma denominação de circunstâncias, conforme o insinuavam palavras da regra anterior: “Mas todos, sem exceção, sejam chamados de irmãos menores” (RnB 6,3).

Certa ocasião, Francisco declarou a um bispo: “Senhor, meus irmãos foram chamados de Menores para que não presumam tornar-se maiores. A vocação deles os ensina a permanecer no chão e a seguir as pegadas da humildade de Cristo” (2Cel, 148).

“Todos os irmãos se esforcem por imitar a humildade e pobreza de Nosso Senhor Jesus Cristo” (RnB 9,1).

Servir à Igreja, nós o fazemos não só pelas nossas atividades exteriores, pela ativa participação nos trabalhos em prol do Reino de Deus, mas antes de tudo e em primeiro lugar pela própria razão de nossa existência, pela nossa vida pobre e serviçal, sem cobiça nem ambição.

Francisco não podia separar vida do Evangelho da vida da Igreja; o Poverello amava e respeitava a Igreja de sua época, mesmo essa sendo santa e pecadora. Ao longo de seu Testamento espiritual, escrito antes de fazer a sua Páscoa, podemos constatar a sua dedicação e respeito à igreja. O observar o Evangelho é a primeira base para Francisco e para os seus seguidores e, consequentemente, a nossa vida franciscana deverá estar inserida dentro da Igreja Católica e em obediência ao Sumo Pontífice (segunda base). 

À guisa de conclusão, cito uma reflexão muito pertinente do nosso estudioso de franciscanismo Frei Celso Márcio:

“A expressão Regra e Vida sugere, em última análise, o convite para que a vida franciscana seja constantemente recriada, para que não permaneça letra morta. E recriar a vida franciscana hoje não significa adotar um padrão homogêneo válido para todos os irmãos, para todas as culturas e para todos os tempos. Recriar não é homogeneizar a vida. Recriar exige a contribuição pessoal e original de cada um. Por isso, ao longo de quase oito séculos, foi possível conviverem como verdadeiros irmãos os frades simples, os iletrados, os porteiros, os agricultores, os cozinheiros, os serviçais com frades sábios, os pregadores, os missionários, os professores, os filósofos, os teólogos, os cientistas, os escritores, os artistas, os poetas, os músicos, recriando cada um a mesma vida franciscana, imprimindo-lhe, porém, cada qual o seu toque de originalidade” (Regra Franciscana, p. 176).

Para aprofundar/Bibliografia:

TEIXEIRA, Celso Márcio. Regra franciscana: evolução, mitos, história. Belo Horizonte: Província Santa Cruz, 2010.

VERHEIJ, Sigismund. Rumo à terra dos vivos. Regra de São Francisco de Assis para os Frades Menores. Tradução de João Bosco Feres. Belo Horizonte: Província Santa Cruz, 2011. 

CROCOLI, Aldir e SUSIN, Luiz Carlos. A Regra de São Francisco de Assis. Apresentação e comentários. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013. (Coleção Regras Comentadas).

MANCINI, Giulio. Secondo la forma del santo Vangelo. Alle origini dell’esperienza francescana. Città di Castello: Edizioni Porziuncola, 2020.

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