Fraternidade e Fome: “Tem que ter fé pra viver nesse país, brasileiro não desiste, nunca vai desistir”

Fraternidade e Fome: “Tem que ter fé pra viver nesse país, brasileiro não desiste, nunca vai desistir”
Relacionar o tema da CF2023 com o Samba-Enredo da Tucuruvi é se incomodar com o que vivemos, é verificar que a fome é consequência nefasta de uma sociedade desigual, é tomar consciência de um problema real que nos convida a recordar que precisamos alimentar o povo sedento de saúde, educação, arte, alimento, água, terra e tantos outros direitos que lhes são negados. Frei Vitor Vinicios da Silva

Relacionar o tema da CF2023 com o Samba-Enredo da Tucuruvi é se incomodar com o que vivemos, é verificar que a fome é consequência nefasta de uma sociedade desigual, é tomar consciência de um problema real que nos convida a recordar que precisamos alimentar o povo sedento de saúde, educação, arte, alimento, água, terra e tantos outros direitos que lhes são negados.



O tempo é a unidade de medida que marca a vida humana, no tempo somos capazes de nascer, crescer e morrer. Existe o tempo humano e existe o tempo do cosmo (casa comum) que não se negam, mas se misturam. O tempo cósmico é visto na natureza quando verificamos, por exemplo, a terra girando em torno do seu próprio eixo, na mão do agricultor que cultiva a terra, planta e colhe. Por outro lado, diferentemente do tempo do agricultor que é regido pelas estações e visto como dom de Deus (Kairós), temos o tempo do comerciante que se rege pela rapidez, pela ganância e pelo lucro do mercado (Chronos). Nessa mesma linha de raciocínio, podemos ver o tempo do cristão que perpassa pela santificação do tempo, seja ele diário, semanal ou anual. Como exemplo, recordamos a Igreja que tem como oração do povo de Deus a Liturgia das Horas, presente desde os primórdios da Igreja que foi, pouco a pouco, aperfeiçoada e organizada em ciclos completos no intuito de santificar o tempo dos cristãos. Assim, somos chamados constantemente, no ciclo dos tempos, a “[…] ouvir os ensinamentos dos apóstolos na comunhão fraterna, na fração do pão e nas orações” (At 2,42).

Nesse sentido, podemos compreender melhor a função do ano litúrgico formado pelos tempos da Quaresma, Páscoa, Comum, Advento e Natal. Essas estações têm como objetivo fomentar o Kairós na vida do cristão, visa propiciar o cultivo da terra (coração) para que se possa colher o bom fruto da semente do Evangelho (ação). De maneira particular, o tempo da quaresma é, justamente, o tempo do preparo, é a hora do agricultor retirar as ervas daninhas, passar o arado, afofar a terra e realizar tudo aquilo que é propício para a plantação. Em consonância com esse objetivo, a Igreja do Brasil oferece um instrumento a mais para esse tempo nos convidando a vivê-lo a luz da Campanha da Fraternidade (C.F.). Essa Campanha não substitui o tempo quaresmal, mas corrobora para uma conversão pessoal, comunitária e social por meio de algum tema emergido da nossa realidade brasileira. Desse modo, a CF 2023 lança luzes com o tema da fome, apresentando a temática “Fraternidade e Fome” tendo como lema “Dai-lhes vós mesmos de comer” (Mt 14,16).

Esse tema não é algo deslocado da realidade brasileira, pelo contrário, já é a terceira vez que essa chaga aparece no cenário da CF (1975, 1985 e 2023). A fome é sim um termo polissêmico, não temos apenas a fome no aspecto biológico (alimentos, água…), mas também espiritual (Deus, arte…) e, por isso, é sempre um desafio gigantesco. Discutir as causas da fome no Brasil é falar de fatores causais como estrutura fundiária, política, economia, religião, educação e tudo aquilo que deveria contribuir para alimentar o ser humano. Assim, fincados no tempo, apontamos o Samba-Enredo da Escola Acadêmicos do Tucuruvi, São Paulo, que escolhe o tema “Da Silva, Bezerra. A voz do Povo” nos remetendo o Brasil de Silvas, homens e mulheres com passados apagados e esquecidos, mas com a força da ancestralidade.

fome é sim um termo polissêmico, não temos apenas a fome no aspecto biológico (alimentos, água…), mas também espiritual (Deus, arte…) e, por isso, é sempre um desafio gigantesco. Discutir as causas da fome no Brasil é falar de fatores causais como estrutura fundiária, política, economia, religião, educação e tudo aquilo que deveria contribuir para alimentar o ser humano.

As vozes do samba paulista trazem a memória de um recifense, José Bezerra da Silva (1927-2005) que é um ícone da música brasileira. Suas composições, músicas e trajetória é um retrato da vida do brasileiro. Bezerra da Silva, é referência nos gêneros musicais coco[1] e samba onde denuncia em suas músicas as realidades do pobre, do marginalizado que vive os prazeres e desprazeres da vida. Com isso, Bezerra da Silva é memória de um povo esquecido e invisibilizado, suas letras são críticas ácidas aos problemas sociais que assolam o país e nos lembra da Aliança feita com Deus, ou seja, o compromisso de construir uma comunidade mais justa e fraterna, uma terra em que “corre leite e mel” (Ex. 33.3) para todos.

O Brasil que “Vem no batuque mandingueiro, traz a força do Congá, firma o ponto no terreiro com a luz de Oxalá. Sua verdade, Jesus por um caminho de amor aos pés da Santa Cruz se ajoelhou”. Aos gritos nos reveste do olhar de Cristo que se incomoda com a realidade miserável de tantos irmãos e irmãs.

A escola de samba, a partir de Bezerra da Silva, nos brinda com a memória de um Brasil diverso, colorido no chão das periferias, quilombos e morros. O Brasil que “Vem no batuque mandingueiro, traz a força do Congá, firma o ponto no terreiro com a luz de Oxalá. Sua verdade, Jesus por um caminho de amor aos pés da Santa Cruz se ajoelhou”. Aos gritos nos reveste do olhar de Cristo que se incomoda com a realidade miserável de tantos irmãos e irmãs. A fome, que a C.F. 2023 aponta, não assola apenas o Brasil, mas um mundo fruto de uma nação injusta em que “[…] gente de terno e gravata que mata mais que fuzil”. Em sintonia, recordamos nossos povos originários yanomamis que invisibilizados foram dizimados por uma necropolítica, precisamos olhar para as diversas fomes que permeiam nossas crianças, mulheres e homens. Em suma, relacionar o tema da CF2023 com o Samba-Enredo da Tucuruvi é se incomodar com o que vivemos, é verificar que a fome é consequência nefasta de uma sociedade desigual, é tomar consciência de um problema real que nos convida a recordar que precisamos alimentar o povo sedento de saúde, educação, arte, alimento, água, terra e tantos outros direitos que lhes são negados.

“[…] gente de terno e gravata que mata mais que fuzil”

Enfim, nosso objetivo é ressaltar ainda mais o convite da Igreja do Brasil para que façamos desse tempo quaresmal um tempo de conversão, uma estação vivida com forte espírito de solidariedade. A mudança se inicia no âmbito pessoal e, consequentemente, haverá uma mudança de estrutura desigual e injusta para uma mais solidária e justa. Como afirma o sambista da Tucuruvi, “Tem que ter fé pra viver nesse país, brasileiro não desiste, nunca vai desistir. A esperança tá em cada um de nós, ôôô a voz do Bezerra é a nossa voz”[2].


[1] É um gênero musical típico das regiões do Norte e Nordeste do Brasil.


[2] Samba-Enredo da Acadêmicos do Tucuruvi 2023.

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