Capítulo I: Em nome do Senhor! Começa a regra de vida dos frades menores.
Frei Hilton Farias de Souza – Ministro Provincial
Bula Papal:
[Honório, bispo, servo dos servos de Deus, aos diletos filhos Frei Francisco e demais irmãos da Ordem dos Frades Menores, saudação e bênção apostólica. Costuma a Sé Apostólica anuir aos piedosos votos e deferir os desejos honestos dos que lhe imploram benévolo favor. Por este motivo diletos filhos no Senhor, propício aos vossos rogos, confirmamos, com autoridade apostólica, a Regra de vossa Ordem aprovada pelo nosso predecessor, o Papa Inocêncio, de saudosa memória, registrada nas presentes letras, e a munimos com a proteção do presente escrito. Ela é assim:]
A bula papal chancelava os documentos importantes que eram emanados na chancelaria pontifícia. Quando se tratava de algum Movimento ou Ordem, a bula dava um reconhecimento da parte da Igreja, aprovando ou confirmando o grupo, evidentemente depois de uma acurada análise do texto pelos juristas da chancelaria. Outorgava assim o grupo religioso e certificava que estavam em plena comunhão com a Igreja Romana.
Na sua obra Rumo à terra dos vivos, Frei Sigismund Verheij nos dá algumas informações importantes a respeito da bula, também conhecida como Solet annuere, que abre e fecha a Regra de 1223:
“O texto da regra foi-nos transmitido de modo excepcionalmente sólido. Existem dois exemplares oficiais do mesmo texto em sua forma original. Um deles é o original da carta do Papa Honório III, que pode ser visto em Assis. O outro é uma cópia do original para arquivo, feita imediatamente e conservada nos arquivos pontifícios de Roma.
A carta original de Honório III é um documento perfeitamente legível, escrito em folha de pergaminho. O documento inclui o texto da regra, devidamente autenticado e registrado. A autenticação é confirmada por um selo. O nome da regra ‘Regula Bullata’ – regra confirmada por uma bula, deriva desse selo (em latim, bulla). A carta tem a data de 29 de novembro de 1223, por isso, a regra é também conhecida como a regra de 1223.
O fato de o texto da regra ter sido incluído numa bula papal não significa que o Papa ou sua chancelaria sejam os seus autores” (Rumo à terra dos vivos, p. 63).
Do ponto de vista da historiografia franciscana, o fato de possuirmos o original da bula e da Regra de 1223 é importantíssimo, porque não se faz história sem documentos credíveis. Como acenado acima, o texto da Regra Bulada encontra-se exposto na chamada Capela das relíquias, no Sacro Convento de Assis, talvez uma das “relíquias” mais preciosas que se encontram naquele local. Para além do texto guardado e protegido pelos frades ao longo de oito séculos, encontra-se uma cópia do original no arquivo vaticano. Era de praxe, antes de um documento oficial sair da chancelaria pontifícia, fazer-se cópia para ser arquivado. Há alguns anos, numa exposição de documentos antigos em Roma, promovido pelo Estado do Vaticano, tive a graça de verificar in loco essa cópia da nossa Regra Bulada.
Capítulo I
Em nome do Senhor!
Começa a Vida dos Frades Menores:
A Regra e a vida dos Frades Menores é esta: observar o santo Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo, vivendo em obediência, sem propriedade e em castidade. Frei Francisco promete obediência e reverência ao Senhor Papa Honório e a seus sucessores canonicamente eleitos e à Igreja Romana. E os demais irmãos estejam obrigados a obedecer a Frei Francisco e a seus sucessores.
O autor Giulio Mancini, comentando o início desse capítulo, assim se expressa: “Proclamada a fé no poder do santo Nome, se abre imediatamente o Incipit: é o título geral da Regra. E imediatamente, a originalidade constitutiva. Não começa a Regra, mas a Vida! ‘A vida do Evangelho’ já era o termo da Forma Vitae (RnB 2). A descrição, diríamos, do modo de viver, um programa de vida ‘dos Frades Menores’. Os frades não são menores da Comuna de Assis, mas como os menores do Evangelho! Viver e agir como menores, um com o outro; isso nos une a todos aos outros” (p. 141).
“Observar o santo Evangelho”, para Francisco e os seus primeiros companheiros e também para nós, essa frase trata da essência carismática do Movimento/Ordem. É um texto fundante, que fez com que Francisco, no momento inicial do seu processo vocacional, descobrisse aquilo que buscava na liturgia, de modo especial no texto do Evangelho.
Na RnB se falava de “seguir a doutrina e o exemplo de Nosso Senhor Jesus Cristo”; na RB se diz de forma lapidar: “Observar o santo Evangelho”, que é o primeiro princípio base, unido aos três conselhos evangélicos, já presente nas novas Ordens. É curioso que a pobreza se chama de sine proprio, sem nada de próprio, e é colocada entre a obediência e a castidade (Cf. Mancini, p. 142).
RB 1, 2-3 – É uma promessa à Sede Apostólica; ou seja, observar a Forma de Vida do santo Evangelho, mas na Forma de Vida católica da Igreja Romana. Francisco nesse momento, não sendo mais Ministro Geral, mas como chefe, faz o pedido, e responsável é aquele que garante a catolicidade e a obediência da sua Ordem. E a Sede Apostólica, na pessoa de Papa Honório, confirma a Regra, aprovada pelo predecessor Inocêncio III. Os frades respondem em obediência a ele.
Santo Evangelho e Santa Igreja católica marcam o texto da Regra até o capítulo 12, onde podemos perceber na expressão que retorna – “sempre súditos e submissos aos pés da mesma santa Igreja e estáveis na fé católica, observemos a pobreza e a humildade e o santo Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo que firmemente prometemos”. São assim delineadas as duas opções de base nas quais atua a fraternidade por ser franciscana ao longo da história.
Esse primeiro capítulo da Regra Bulada contém a síntese de tudo o que Francisco quer dizer aos seus irmãos. Ele apresenta os princípios fundamentais relacionados a toda a Regra. Os onze capítulos que seguem vão desenvolver os diversos elementos concretos da fraternidade, integrando-os na realidade eclesial. No final do capítulo 12, encontramos uma frase que sintetiza, por assim dizer, a nossa espiritualidade e meta: “observemos a pobreza e a humildade e o santo Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo que firmemente prometemos”.
O primeiro capítulo da nossa Regra pode ser esquematizado da seguinte maneira:
A. Uma vida;
B. Uma vida segundo o Evangelho;
C. Uma vida segundo o Evangelho e em comunhão com a Igreja.
A. UMA VIDA
Nos primórdios da nossa Ordem, não sobressaiu em primeiro lugar uma Regra, mas uma modalidade toda singular de vida cristã em comunhão com a Igreja, uma maneira cristã de encarar a existência. No próprio Testamento, Francisco diz: “E aqueles que vinham assumir esta vida davam aos pobres tudo o que podiam ter; e estavam contentes com uma única túnica, remendada por dentro e por fora, com o cordão e os calções. E mais não queríamos ter” (Test, 16-17).
Nossa Ordem é realmente um viver em comum, uma verdadeira comunhão de vida entre os irmãos na Igreja. Francisco considerava os Frades Menores como membros de uma só família, como a imagem que ele usa para expressar isso, “E com confiança um manifeste ao outro a sua necessidade, porque, se a mãe nutre e ama a seu filho carnal, quanto mais diligentemente não deve cada um amar e nutrir a seu irmão espiritual?” (RB, 6, 9).
Nossa Ordem não é um agrupamento religioso, no qual se congregam pessoas que desejam alcançar mais facilmente um objetivo comum ou status social, mediante um trabalho. A vida franciscana nasce de um carisma singular que Francisco recebera de Deus. Para Francisco, Vida e Regra são termos sinônimos. Ensinava que os frades deviam tê-las diante dos olhos como exortação (Cf. 2 Cel, 208).
B. UMA VIDA SEGUNDO O EVANGELHO
Desde o início do seu Movimento, Francisco considerava sua vida e a dos irmãos como uma vida marcada pelo Evangelho, como “Vida do Evangelho” (Cf. Test, 14). É interessante que, na pequena Forma de Vida que enviou para as Irmãs Pobres de São Damião, ele indica que elas vivessem “segundo a perfeição do santo Evangelho”. Levar uma “vida segundo o Evangelho” era, naquela época, o ideal de muitos cristãos que tomavam a sério o cristianismo. Todos entendiam, com isso, a obrigação de viver na maior pobreza possível, ganhando o pão com o trabalho das próprias mãos e, quando necessário, mendigando como todos os pobres. Todos também se vestiam com simplicidade e em tudo se contentavam com o que podiam conseguir. Procuravam servir ao Reino de Deus através da pregação contínua, de sorte que muitos percorriam as regiões como pregadores ambulantes.
Muitos desses pregadores ambulantes e dos seus grupos mandavam inclusive traduzir o Novo Testamento em língua “vulgar”, para poderem propor mais fielmente a doutrina do Senhor no Evangelho e o exemplo dos apóstolos. Vários grupos entraram em atrito com a Igreja e acabaram na heresia. Mesmo que tivesse elementos em comum com esses grupos, Francisco se distinguia deles por duas características: o Evangelho não era para ele uma doutrina em que ele se agarrasse fanaticamente, mas testemunho de vida de Jesus; como o próprio Francisco expressou na sua primeira Admoestação citando o evangelista São João: “eu sou o caminho, a verdade e a vida”. O outro elemento era a consciência clara de comunhão com a Igreja, como expressa nesse capítulo I, em que Francisco deixa nítido que quer “obediência e reverência ao Senhor Papa Honório e aos seus sucessores canonicamente eleitos e à Igreja Romana”.
C. UMA VIDA SEGUNDO O EVANGELHO E EM COMUNHÃO COM A IGREJA
Desde o início, Francisco quer prestar obediência ao Senhor Papa e aos seus sucessores. Parece que Francisco tinha clareza dos problemas cometidos pelos movimentos heréticos de sua época, principalmente quanto à submissão à Igreja de Roma: “[…] e encontrasse sacerdotes pobrezinhos deste mundo, não quero pregar nas paróquias em que eles moram, passando por cima da vontade deles” (Test. 7). O primeiro capítulo da Regra parece insinuar que Francisco, de certo modo, via nos três votos o elemento essencial de uma vida segundo o Evangelho. Três votos significam a radicalidade da qual a agente quer viver o Evangelho. É renúncia.
Francisco escolhe, no primeiro capítulo da Regra, uma denominação para seus irmãos, fato também inédito na história das instituições monásticas. Até então, as várias formas de monaquismo se distinguiam, quer pela cor do hábito, monges negros ou brancos (Beneditinos, Premonstratenses), quer pelo nome do fundador – Beneditinos (Bento de Núrcia) –, quer pelo mosteiro de origem – Cartuxos (Chartreusse), Cistercienses (Citeaux), Premonstratenses (Premontré). Mas para nós vem o nome determinado: “Frades Menores”. Exprime algo mais do que uma denominação de circunstâncias, conforme o insinuavam palavras da regra anterior: “Mas todos, sem exceção, sejam chamados de irmãos menores” (RnB 6,3).
Certa ocasião, Francisco declarou a um bispo: “Senhor, meus irmãos foram chamados de Menores para que não presumam tornar-se maiores. A vocação deles os ensina a permanecer no chão e a seguir as pegadas da humildade de Cristo” (2Cel, 148).
“Todos os irmãos se esforcem por imitar a humildade e pobreza de Nosso Senhor Jesus Cristo” (RnB 9,1).
Servir à Igreja, nós o fazemos não só pelas nossas atividades exteriores, pela ativa participação nos trabalhos em prol do Reino de Deus, mas antes de tudo e em primeiro lugar pela própria razão de nossa existência, pela nossa vida pobre e serviçal, sem cobiça nem ambição.
Francisco não podia separar vida do Evangelho da vida da Igreja; o Poverello amava e respeitava a Igreja de sua época, mesmo essa sendo santa e pecadora. Ao longo de seu Testamento espiritual, escrito antes de fazer a sua Páscoa, podemos constatar a sua dedicação e respeito à igreja. O observar o Evangelho é a primeira base para Francisco e para os seus seguidores e, consequentemente, a nossa vida franciscana deverá estar inserida dentro da Igreja Católica e em obediência ao Sumo Pontífice (segunda base).
À guisa de conclusão, cito uma reflexão muito pertinente do nosso estudioso de franciscanismo Frei Celso Márcio:
“A expressão Regra e Vida sugere, em última análise, o convite para que a vida franciscana seja constantemente recriada, para que não permaneça letra morta. E recriar a vida franciscana hoje não significa adotar um padrão homogêneo válido para todos os irmãos, para todas as culturas e para todos os tempos. Recriar não é homogeneizar a vida. Recriar exige a contribuição pessoal e original de cada um. Por isso, ao longo de quase oito séculos, foi possível conviverem como verdadeiros irmãos os frades simples, os iletrados, os porteiros, os agricultores, os cozinheiros, os serviçais com frades sábios, os pregadores, os missionários, os professores, os filósofos, os teólogos, os cientistas, os escritores, os artistas, os poetas, os músicos, recriando cada um a mesma vida franciscana, imprimindo-lhe, porém, cada qual o seu toque de originalidade” (Regra Franciscana, p. 176).