Por que esse imaginário fez parte da pregação da Igreja, a partir do ano 1000?
Frei Jacir de Freitas Faria [1]
Diabo, Demônio, Satã ou Satanás: acusador, força opositora a Deus, tentador, anjo decaído, Lúcifer, figura que amedronta, capeta. Como se desenvolveram essas visões do Diabo ao longo da história? O que é o Diabo? Um ser perigoso que impõe medo, que tem chifres, rabo, pernas de bode e asas de morcego. Ao desaparecer, fede a enxofre. Ele vive no meio do fogo do Inferno. Por que esse imaginário fez parte da pregação da Igreja, a partir do ano 1000? Não está na hora de libertarmos do capeta? Ele ainda existe?
Na Bíblia aparece a figura de Satã, traduzido para o grego como diábolos (Diabo), e Satanás, tradução grega do aramaico Satanah. No livro do Gênesis, Satã é identificado com a Serpente do Éden, a tentadora. Ele é o tentador. Gênesis não fala claramente do Diabo. Sua identificação com a serpente veio mais tarde. No livro de Jó, Deus permite Satanás testar Jó. Satanás está subordinado a Deus. Nos evangelhos, Satanás também testa Jesus. Nas cartas paulinas, Satanás é testador, impede o avanço do cristianismo, e anjo da morte (I Cor 7,6; II Cor 2,11). No Apocalipse, ele é o acusador. Os Padres da Igreja, sobretudo Orígenes, a imagem de Satanás é um rebelde contra Deus e perseguidor da humanidade. Portanto, a Bíblia fala de Satanás, o Opositor, e não de capeta. Essa figura imaginária tem sua origem no Oriente e foi racionalizada e apregoada na Igreja Católica a partir do ano 1000, quando as profecias apocalíticas de que os demônios estariam soltos para combater Jesus que voltaria (Ap 20,1-3).
Na Teologia da Baixa Idade Média (séc. XI-XIV), Satanás passou a ser aquele que pune as almas condenadas ao Inferno. Essa época foi de grandes sofrimentos, doenças e pestes avassaladoras, como a Bubônica, conhecida também como Negra. A Igreja encontrou na imagem do terrível Diabo a explicação para tais questões. A culpa é do Diabo, e dele é preciso se livrar constantemente, caso contrário o Inferno esperaria o fiel.
Para que isso não acontecesse, o melhor caminho seria evitar o pecado. Com isso, a Igreja saiu fortalecida no seu poder sobre as almas e sociedade.
Em 1326, o Papa João XXII, com a bula Super Illius Specula, estabeleceu a relação do Diabo com a magia e heresia. Um século mais tarde, a magia ruim, a negra, passou a ser chamada de bruxaria, e o Diabo, o seu legítimo senhor. A bruxaria, assim, era vista como era fruto da ação maléfica do Diabo, que podia usar de mulheres, consideradas frágeis, para agir no mundo. Essas faziam um pacto com o Diabo. Quantas mulheres dessa época foram acusadas de bruxas e condenadas à morte! A prática da bruxaria era considerada idolatria ao Diabo e heresia. A magia branca, realizada pelos clérigos e bons cristãos, com interesses benéficos, não era condenada pela Igreja.
A ação de Satanás no ser humano começa pelo seu corpo, ensina a Igreja, precisamente pela sexualidade, e atinge a alma. Íncubus, o demônio masculino, e Súcubus, o demônio feminino, podiam entrar no quarto de mulheres e homens durante a noite para ter relações com eles, tendo, assim, domínio sobre seus corpos. Nessa perspectiva é que surgiu a visão de que a mulher é a presa fácil para a ação diabólica. Acreditava-se que as feiticeiras tinham relação sexual, por meio de ritos orgíacos, com o demônio. O poder de fazer o mal de várias formas vinha dessa relação com o “Senhor do prazer”, o diabo. Portanto, a mulher e suas malícias são obras do demônio, sobretudo as feiticeiras, por estragarem a ordem natural estabelecida do universo.
A partir do século XVI, o Diabo passa a ser o grande tentador, inimigo de Deus e, consequentemente, da Igreja. Na verdade, Satã virou Diabo que se tornou Satanás, o grande inimigo de Deus. Ele recebeu de Deus o encargo para punir eternamente a raça humana no Inferno e tentá-la em vida. É nessa construção histórica imaginária que podemos situar a presença de Jesus, o Filho de Deus, que veio ao mundo para redimir alguns seres humanos, e de Maria história para livrar o fiel das artimanhas de Satanás, do Diabo, e interceder junto ao seu Filho a salvação, para evitar o fogo do Inferno.
Na arte a imagem de Satanás aparece, primeiro, de forma branda como anjo decaído, o qual recebeu o nome de Lúcifer, a “estrela d’alva” (Is 4,12) e, depois, como um violento devorador de almas.
Num mosaico do século XIII feita na cúpula do batistério da catedral de Florença. Satanás, figura de chifres, grande e horrível, juntamente com duas cabeças de serpentes e animais infernais torturam e devoram pecadores. O mosaico completo coloca Cristo majestoso no centro e Satã à sua esquerda. Depois de Cristo, somente Satanás, dentre todas a imagens do mosaico, é o único que também tem dimensões grandes. Trata-se do Juízo Final. Vendo essas imagens, o batizando tomaria consciência da importância do batismo para sua salvação e os perigos dos pecados e sua relação intrínseca com o Satã devorador.
No início da Baixa Idade Média (séculos XI e XII), as imagens de Satanás como perseguidor dos humanos, figura de olhos vermelhos, de cabeça e asas de fogo, ocuparam o imaginário popular. As catedrais passam a retratar o Juízo Final com a figura majestosa de Jesus rejeitando essa figura abominável.
No século XIV, a representação do Inferno e de Satanás, o tentador que leva os cristãos à perdição, que castiga violentamente os culpados no Inferno, após um julgamento, é o grande marco na história ocidental. Começando pelo clássico da poesia medieval, a Divina Comédia, de Dante Alighieri, retratando o Inferno, o Purgatório e o Paraíso, no início do século XIV, passando por outras grandes obras de arte, como: afrescos no Campo Santo e na capela Strozzi de Santa Maria Nova em Florença; o Inferno de Taddeo di Bartolo; Visão de Tungdal; Juízo Final de Viena etc.
O Diabo e suas maldades infernais estavam por toda parte. Quem não haveria de ter medo de ver sua alma indo para esse lugar horrível? Essa visão satânica e infernal chegou ao século XVI de forma esplendorosa.
Merece destaque, nesse cenário de medo e de visões demoníacas, de pecado e de culpa, com a consequente ida ao Inferno a quem não resistisse ao tentador, a figura de Santo Antão, o fundador do monaquismo, no início do cristianismo. Diante das tentações demoníacas representadas pela mulher nua, comida, bebidas etc. Antão se mostrava sereno e fiel a Cristo.
O afresco do holandês Hieronymus Bosch, Tentações de Santo Antão, pintado em 1500, retrata essa visão medieval inspirada em Santo Antão.
Outra obra de Bosch, o Jardim das delícias terrenas segue a mesma linha, acentuando ainda mais a ligação da tentação ao sexo e à mulher. O fiel vê-se diante do Paraíso perdido de Adão e Eva e da possibilidade do Inferno, onde estão sendo punidos
os depravados sensuais. O jardim está no centro, e o Inferno, nas asas laterais. No jardim as pessoas vivem o prazer da carne sem sentimento de culpa, no gozo, na luxuria na efemeridade da vida. Tendo as asas laterais representado o Inferno, o artista que demonstrar como na vida estão presentes o Paraíso e o Inferno.
O medo de Satanás, com sua ação violenta e destruidora, é facilmente compreendido no contexto de catástrofe final que o mundo esperava, na Baixa Idade Média e na Moderna.
Até mesmo Lutero alimentava o medo do Diabo, que se espalhou pela Alemanha protestante, no teatro, na literatura e sobretudo na imprensa escrita que divulgou na Europa inúmeras obras sobre Satanás. Constatando essa propagação exagerada de Satanás e do Inferno em todos os níveis da sociedade ocidental, entre populares e eruditos, Delumeau afirma: “foi no começo da Idade Moderna e não na Idade Média que o Inferno, seus habitantes e seus sequazes mais monopolizaram a imaginação dos homens do Ocidente”.
Nos séculos XVI e XVII, os ensinamentos sobre o Satanás admitem que ele está em toda parte, no Inferno, na terra, no ar, no mar, nas florestas, no subsolo e de todo o tipo. Eles estão encarregados de agir em todas as situações da vida cotidiana, antes do combate final, o fim do mundo. A cristandade, vendo-se ameaçada, entende que o avanço dos turcos na Europa, assim como a presença de judeus, é ação de Satanás.
O poder e a obra de Satanás e consequente medo de sua ação perduraram até a segunda metade do século XVII, quando o Ocidente percebeu que o mundo não acabaria, o Juízo Final foi adiado, sem data marcada. Nessa época, a cristandade enfraqueceu, e com ela veio o medo.
Resquícios dessa visão permanecem, no entanto, até nossos dias. O capeta não existe. Quem sãos os capetas de hoje? Bom, dei a fundamentação histórica, a resposta à essa pergunta, deixo para você. Que Deus nos livre de todos os males e dos malvados!
[1] Doutor em Teologia Bíblica pela FAJE (BH). Mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Professor de Exegese Bíblica. É membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB). Sacerdote Franciscano. Autor de dez livros e coautor de quinze. Youtube: Frei Jacir Bíblia e Apocrifos. https://www.youtube.com/channel/UCwbSE97jnR6jQwHRigX1KlQ
[2] As considerações que seguem podem ser conferidas no nosso livro: FARIA, Jacir de Freitas. O medo do Inferno e a arte de bem morrer: da devoção a Nossa Senhora da Boa Morte às irmandades Negras de Nossa Senhora da Boa Morte. Petrópolis: Vozes, 2019.
[3] LE GOFF. A bolsa e a vida: a usura na idade média, 2.ed. São Paulo: Editora brasiliense, 1989, p. 67.
[4] LYON, Henry R. Dicionário da Idade Média. Tradução: Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1997. p. 138.
[5] MELTON, J. Gordon. O Livro dos Vampiros: a Enciclopédia dos Mortos-Vivos. São Paulo: Makron Books, 1995. p. 29.
[6] KRAMER, Heinrich; SPRENGER, Jacobus. Malleus Maleficarum: o martelo das bruxas. Brasil: Rosa dos Ventos, 2007, p. 31, citado por AVELINO, Jamil David. O medo na Idade Média (séculos X-XIII). 2010. 30p. Artigo (Licenciatura em História) – Faculdade Alfredo Nasser/Instituto Superior de Educação, Aparecida de Goiânia, 2010, p. 7.
[7] KELLY, Henry Ansgar. Satã: uma biografia. São Paulo: Editora Globo, 2008, p. 361-368.
[8] DELUMEAU, Jean. História do Medo no Ocidente 1300 – 1800: uma cidade sitiada. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 242-243.
[9] Ibidem, p. 247-248.
[10] Ibidem, p. 393-418.