Capítulos III e IV da Regra Bulada

Capítulos III e IV da Regra Bulada

Capítulo III – O ofício divino e o jejum e como devem os irmãos ir pelo mundo
Capítulo IV – Que os irmãos não recebam dinheiro

Frei Hilton Farias de Souza, ofm

CAPÍTULO III – O OFÍCIO DIVINO E O JEJUM E COMO DEVEM OS IRMÃOS IR PELO MUNDO

“Os clérigos rezem o ofício divino conforme o diretório da santa Igreja Romana, com exceção do saltério; por isso, poderão ter breviários. Os leigos, no entanto, digam vinte e quatro Pai-Nossos (cf. Mt 6, 9-13) pelas Matinas, cinco pelas Laudes; pela Prima, pela Terça, pela Sexta e pela Noa, em cada uma delas sete; pelas Vésperas doze e pelas Completas sete; e rezem pelos defuntos. E jejuem desde a Festa de Todos os Santos até o Natal do Senhor. A santa quaresma, porém, que começa com a Epifania e se prolonga por quarenta dias (cf. Mt 4,2), a qual o Senhor consagrou com seu santo jejum, os que nela jejuarem voluntariamente sejam abençoados pelo Senhor, e os que não o quiserem não sejam obrigados. Jejuem, porém, na outra [que se estende] até a Ressurreição do Senhor. Em outros tempos, não sejam obrigados a jejuar, a não ser na sexta-feira. No entanto, em tempo de manifesta necessidade, os irmãos não sejam obrigados ao jejum corporal. Aconselho, todavia, admoesto e exorto a meus irmãos no Senhor Jesus Cristo, que, quando vão pelo mundo, não discutam nem alterquem com palavras (cf. 2Tm 2,14), nem julguem os outros; mas sejam mansos, pacíficos e modestos, brandos e humildes, falando a todos os honestamente, como convém. E não devem andar a cavalo, a não ser que sejam obrigados por manifesta necessidade ou por enfermidade. Em qualquer casa em que entrarem, digam primeiramente: Paz a esta casa (cf. Lc 10,5). E, segundo o santo Evangelho, seja-lhes permitido comer de todos os alimentos que forem colocados diante deles (cf. Lc 10,8)”.

A. Ofício Divino

“Os clérigos rezem o ofício divino conforme o diretório da santa Igreja Romana, com exceção do saltério; por isso, poderão ter breviários”.

Na terminologia da época de Francisco, o Ofício Divino abrangia a celebração diária da eucaristia e das Horas canônicas. Os clérigos deviam rezar essas Horas canônicas “segundo o rito da Santa Igreja de Roma”, isto é, deviam recitar o Ofício Divino da mesma forma que o Papa fazia em Roma com seus clérigos. Quase todas as dioceses e Ordens tinham ritos próprios para as horas canônicas. Francisco, porém, preferiu ligar estreitamente sua Ordem à Igreja de Roma e ao Papa.

O Papa Inocêncio III, na sua época, empreendeu a reforma litúrgica do Ofício Divino, introduzindo o chamado breviário; isso facilitaria sobretudo o deslocamento da Cúria Romana, que não precisava transportar livros grandes e pesados para a recitação do Ofício Divino. Francisco, nesse capítulo III da sua Regra, adota a liturgia reformada pelo Papa Inocêncio III, o que facilitava muito a vida de seu movimento, cuja característica principal era a vida itinerante; tornava desnecessária a utilização de um grande número de livros litúrgicos até ali previstos para a recitação do Ofício. Somente para ilustrar, o Rito do Ofício Monástico previa uma série de livros para o Ofício coral, como: antifonário, saltério, hinário, santoral, ordinário etc. Os frades menores têm um papel importante na História da Liturgia Romana, sobretudo na sua característica de grupo itinerante, pois contribuíram para a difusão da celebração do Ofício Divino do Rito Romano através do uso e da recitação do breviário.

Enquanto os clérigos em geral adotavam o rito da Igreja, a cujo serviço estavam destinados, os clérigos entre os frades menores não se subordinavam a uma Igreja ou diocese particular, mas ficavam ligados diretamente à Igreja de Roma. A única particularidade é que não adotavam a tradução dos salmos usados em Roma (Saltério Romano), mas a tradução em todo o ocidente, o chamado Saltério Galicano.

Francisco não queria privar-se desse louvor a Deus, nem sequer nos dias penosos de suas múltiplas doenças; queria um frade que rezasse com ele o Ofício. Era uma forma de comunhão com a Igreja. No próprio Testamento, Francisco manifesta esse desejo: “E embora eu seja simples e enfermo, quero, no entanto, ter sempre um clérigo que reze para mim o ofício, como consta na regra” (Test, 29).

Entre os frades, a obrigação de rezar o Ofício da Igreja de Roma era não só dos clérigos, mas também dos Irmãos Leigos; ao menos a chamada Regra Não Bulada previa desse modo. Na Regra Bulada para os frades Leigos, segundo a praxe de então, Francisco coordenou uma espécie de Ofício dos Pai-Nossos.

“Os leigos, no entanto, digam vinte e quatro Pai-Nossos (cf. Mt 6, 9-13) pelas Matinas, cinco pelas Laudes; pela Prima, pela Terça, pela Sexta e pela Noa, em cada uma delas sete; pelas Vésperas doze e pelas Completas sete”;

“Para os irmãos que não sabiam ler, chamados genericamente de “leigos”, segundo o costume da época, a Regra prevê um “Ofício” composto de Pai-Nossos, distribuídos segundo as horas canônicas. Essa forma de organizar o Ofício não é original de Francisco, pois já se usava em outras Ordens religiosas, embora por modalidades e por motivações diversas. Curiosamente, a chamada RnB faz uma distinção entre os leigos que sabem e os que não sabem ler; prescreve também um Ofício dos Pai-Nossos um pouco mais especificado e com o acréscimo do Credo nas três horas que se julgavam mais importantes: as Matinas, a Prima e as Vésperas (Cf. RnB 3,10). Embora o Ofício composto dos Pai-Nossos era frequente em seu tempo, a adoção feita por Francisco corresponde a sua grande devoção pela oração dominical, como podemos comprovar em vários de seus escritos (Cf. 2Fi, 21). Ademais de ter composto a chamada Paráfrase do Pai-Nosso” (URIBE, 2006, p. 137-138).

 Oração pelos defuntos

“[…] e rezem pelos defuntos.”

“Trata-se de uma formulação imprecisa que, ao não mencionar o sujeito e no lugar que aparece, poderia pensar que se faça referência aos irmãos leigos; porém pelo seu conteúdo se deduz que se refira a todos os irmãos. É uma formulação vaga, pois não especifica nem quem, nem quando, nem como devem orar pelos defuntos. A Regra de 1221 (Cf. RnB 3,6) ordenava a recitação do Salmo De profundis e um Pai-Nosso. A não precisão pode ser positiva se se toma como um espaço para a criatividade. De todas as maneiras, a sobriedade desse texto remete a um princípio de grande importância que se inspira no mistério da Comunhão dos santos […]” (URIBE, 2006, p. 138-139).

B. Jejum 

No jejum entra em ação dizer “não” a si mesmo e o “morrer para si mesmo”. Francisco, além de recomendar o jejum antes da Páscoa e antes do Natal, prevê uma terceira “quaresma”, a partir da Festa da Epifania, caindo, pois, no tempo em que Nosso Senhor Jesus Cristo começou a jejuar. Francisco apreciava muito o jejum, mas foi muito criterioso ao determinar a medida para seus irmãos. “Não sejam os irmãos obrigados ao jejum corporal”. Em contraste com outras regras monásticas, Francisco não dá normas específicas quanto ao modo de jejuar. Deixa a seus irmãos a liberdade do Evangelho.

“O jejum era considerado pela legislação monástica como algo inerente a qualquer forma de vida religiosa. A Regra de São Francisco também contempla este aspecto na vida dos irmãos, porém de forma muito sintética, reduzindo-se ao mais essencial. Estas normas sobre o jejum, que tem de seu um caráter ascético-penitencial, adquirem um especial significado cultual e teológico ao ser colocadas como continuação das referências ao Ofício divino, e como preparação para os momentos litúrgicos mais importantes do ano […]”. (URIBE, 2006, p. 142).

A formulação dessas normas está feita em um conciso estilo jurídico, com frases curtas, dizendo apenas o necessário. Francisco nesse parágrafo distingue cinco segmentos (disposições) a respeito do jejum (Cf. URIBE, 142):

I. A Quaresma do Advento

“E jejuem desde a Festa de Todos os Santos até o Natal do Senhor.”

Segundo a compreensão comum da Idade Média, jejuar compreendia abstinência também de carnes, ovos e laticínios. Esse jejum que precedia a festa do Natal (ou do Advento) era conhecido na antiguidade cristã, mas, parece, na época de Francisco não era observado universalmente; a julgar pela forma como é apresentado na legislação de alguns grupos religiosos, não se praticava de modo uniforme (Cf. URIBE, 142-143).

II. A Quaresma depois da Epifania

“A santa quaresma, porém, que começa com a Epifania e se prolonga por quarenta dias (cf. Mt 4,2), a qual o Senhor consagrou com seu santo jejum, os que nela jejuarem voluntariamente sejam abençoados pelo Senhor, e os que não o quiserem não sejam obrigados.”

Parece que essa modalidade de jejum era praticada nos séculos IV-V pelos cristãos de Jerusalém, segundo o testemunho da Peregrina Egéria. Essa prática se estendeu ao Ocidente e durante a Idade Média foi assumida por várias Ordens religiosas. A razão reside na liturgia daquela época; ela dava uma ênfase maior em três aspectos da Epifania: a manifestação de Cristo aos pagãos, o sinal das Bodas de Caná e o batismo de Jesus no Jordão. Esse último acontecimento marca nos Evangelhos o começo do seu jejum no deserto durante quarenta dias e nesse episódio se inspiravam os grupos religiosos para fazer seu jejum (Cf. URIBE, 2006, p. 143). 

“[…] a qual o Senhor consagrou com seu santo jejum, os que nela jejuarem voluntariamente sejam abençoados pelo Senhor” (RB 3,7). A menção feita aqui por Francisco do jejum de Cristo, que aparece também na RnB, sugere que no seu pensamento essa prática não tinha uma função ascética, mas no seu ideal de seguir o Mestre também dessa forma. Note-se que o único jejum fortemente proposto por Francisco foi o que consagrou o Senhor com seu santo jejum (Cf. URIBE, 2006, p. 143). 

“[…] os que nela jejuarem voluntariamente sejam abençoados pelo Senhor e os que não o quiserem não sejam obrigados” (RB 3,7. A bênção oferecida por Francisco aos que praticarem a quaresma levou a dar-se a esse jejum o nome de “quaresma dos benditos”.

Outro elemento importante para destacar é o aspecto voluntário presente nessa disposição, em consonância com tantas outras liberdades já acenadas nessa regra (Cf. URIBE, 2006, p. 144). 

III. Quaresma maior

“Jejuem, porém, na outra [que se estende] até a Ressurreição do Senhor.”

Essa tratava-se de uma norma estabelecida pela Igreja, obrigatória naquela época para todos os cristãos, por isso Francisco a transcreve na sua Regra.

IV. O jejum das sextas-feiras

“Em outros tempos, não sejam obrigados a jejuar, a não ser na sexta-feira.”

Essa prescrição do jejum nas sextas-feiras era também obrigatória naquela época para todos os cristãos.

Na prática da fraternidade anterior à RnB, através das notícias da Crônica de Jordão de Jano, afirma que, segundo a Regra primitiva, os irmãos jejuavam nas quartas-feiras e sextas-feiras e, com a permissão do bem-aventurado Francisco, também nas segundas-feiras e sábados (Cf. FF, JJ, n. 11, p. 1267). A exceção estava se a Festa do Natal caísse numa sexta-feira, dada a importância dessa festa para Francisco.

V. A exceção do jejum

“No entanto, em tempo de manifesta necessidade, os irmãos não sejam obrigados ao jejum corporal.”

Para Caetano Esser, a expressão “manifesta necessidade” é uma expressão de Francisco; trata-se de um modo de expressar-se que se encontra em outros escritos de Francisco. Como expressa na RnB 9, 16: “Igualmente, também em tempo de manifesta necessidade, todos os irmãos ajam com relação às suas coisas necessárias, de maneira como o Senhor lhes conceder a sua graça, porque necessidade não tem lei”. Nesse caso se atém ao princípio jurídico de seu tempo, baseado no axioma do Decreto de Graciano: “A necessidade não tem lei” (Cf. URIBE, 2006, p. 145). 

Se compararmos as poucas orientações sobre o jejum que Francisco coloca na sua Regra com as que aparecem nas regras monásticas como a de São Bento, que previa até a medida das comidas, essa forma sintetizada de falar sobre o jejum se justifica pela vocação itinerante dos Irmãos Menores, que com liberdade evangélica devem contentar-se com o que lhes é oferecido ao longo do caminho missionário (Cf. RnB 3,13).

C. A vida cristã dos irmãos entre as pessoas de fora

“Aconselho, todavia, admoesto e exorto a meus irmãos no Senhor Jesus Cristo, que, quando vão pelo mundo, não discutam nem alterquem com palavras (cf. 2Tm 2,14), nem julguem os outros; mas sejam mansos, pacíficos e modestos, brandos e humildes, falando a todos os honestamente, como convém.”

“Apesar de pertencer à parte final do capítulo III, esse texto constitui uma unidade literária independente tanto por sua forma como por seu conteúdo. Por sua forma é uma exortação, a segunda grande exortação da Regra e uma das mais bonitas; por seu conteúdo apresenta os princípios fundamentais que devem guiar os irmãos quando vão pelo mundo. Nessa unidade foram recolhidos vários elementos dispersos na Regra de 1221” (URIBE, p. 150).

Pela sua presença no mundo, devem os frades menores glorificar a Deus e servi-lo com o testemunho de sua vida. Os irmãos deviam “glorificar a Cristo”, plasmando n’Ele sua vida segundo o Evangelho. Pelo testemunho de uma vida toda cristã, deviam viver aos olhos dos homens a doutrina de Nosso Senhor Jesus Cristo, de maneira convincente e empolgante, para assim reconduzirem os homens a Deus. Quem briga e discute quer ter razão. Quem julga os outros é porque sobrepõe aos demais ou se julga melhor do que eles. Quando Francisco diz: “mas sejam mansos e pacíficos, modestos, brandos e humildes”, exige aqui virtudes que fazem parte essencial da vida minorítica.

“Tanto aqui como nas unidades seguintes se supõe que os irmãos estão organizados em pequenos grupos de pregadores ambulantes e trabalhadores ocasionais, não em comunidades estáveis em conventos […]” (URIBE, 2006, p. 150-151).

D. Três exortações finais relacionadas com a minoridade

I. Não andem a cavalo

“E não devem andar a cavalo, a não ser que sejam obrigados por manifesta necessidade ou por enfermidade.”

Essa norma foi tomada da RnB 15. “Essa recomendação não é original de Francisco, pois outros grupos religiosos contemporâneos já contemplaram algo semelhante nas suas regras, como por exemplo a Regra dos Trinitários. No caso de Francisco, por trás dessa normativa poderia se encontrar uma maior coerência com a pobreza e faz referência ao discurso evangélico da missão, em que Jesus pede a seus discípulos que ‘não levem nada pelo caminho’, do qual é uma atualização. Trata-se de uma disposição que, tomada em seu sentido literal, tinha um especial sentido na Idade Média, pois cavalgar era um privilégio da nobreza e da burguesia” (URIBE, p. 157).

Como verdadeiros “menores”, os irmãos não deverão andar a cavalo, privilégio então reservado aos nobres e ricos. Só quem tinha posição social ou dinheiro podia se dar ao luxo de andar a cavalo.

Ao final desse versículo, Francisco fala de “necessidade”, deixando um espaço à ponderação e discrição da pessoa, como ocorreu durante os últimos anos de vida de Francisco, por causa de suas enfermidades, se viu obrigado a se deslocar no lombo de humildes cavalgaduras (Cf. URIBE, 2006, p. 157).

II. Saudação de paz

“Em qualquer casa em que entrarem, digam primeiramente: Paz a esta casa (cf. Lc 10,5).”

Provavelmente esse texto já se encontrava na chamada Regra Primitiva, aprovada pelo Papa Inocêncio III. Na RnB 14, 1-6, podemos verificar uma ampliação da parte de Francisco do seu “conceito de paz” para os irmãos. “Segundo a mente de Francisco, que o irmão, além de ser pacífico, deve ser também arauto da paz. Francisco se sentia chamado por Deus a ser um pregoeiro da paz, como o demonstra inclusive seu frequente uso na saudação no início de várias de suas cartas” (URIBE, 2006, p. 158-159).

Quando entrarem numa casa, devem desejar a paz aos seus moradores. Vivam os irmãos como homens pacíficos e preguem a paz. Testamento: “Como saudação revelou-me o Senhor que disséssemos: O Senhor te dê a paz” (Test, 23). Poderíamos dizer que um dos motes próprios de Francisco era esse desejo evangélico de saudar as pessoas com esse Shalom, que não significa uma mera ausência de guerra ou de conflito entre as pessoas, mas um modo de estar e se comportarem entre as pessoas. Provavelmente Francisco tinha muito presente na sua vida pessoal as inúmeras situações de beligerâncias que presenciou na sua época.

III. Alimentação

“E, segundo o santo Evangelho, seja-lhes permitido comer de todos os alimentos que forem colocados diante deles (cf. Lc 10,8)”.

“A regra apresenta a liberdade frente aos alimentos, que devem ter os irmãos quando vão pelo mundo; nesse caso não se oferece uma citação textual do Evangelho, mas se toma uma inspiração direta do mesmo, tal como acontece na Regra de 1221, onde esse tema recorre em três ocasiões, sinal do grande interesse de Francisco para salvar a todo custo uma condição importante inerente a sua concepção de vida evangélica como itinerância apostólica” (URIBE, 2006, p. 159).

“Trata-se de uma liberdade evangélica à qual não quer renunciar o pobrezinho, pois é própria dos que devem viver entre a gente, submetidos às possibilidades de subsistência que oferece cada lugar, diferente da vida estável que levavam os monges nos seus mosteiros, e onde era fácil observar o regime alimentício prescrito pela sua Regra. Por outro lado, essa liberdade corresponde a uma atitude evangélica que procede de uma verdadeira confiança na providência e implica o realismo da pobreza quando se dedica no exercício da missão” (URIBE, 2006, p. 159-160).

“E, segundo o santo Evangelho, seja-lhes permitido comer de todos os alimentos”. Quem vive só de esmolas não pode formular desejos nem condições. Não devem os frades menores manifestar desejos, mas façam-se gentilmente com modéstia e humildade. Não façam quaisquer exigências aos donos, mas comam de tudo o que se lhes oferecer.

CAPÍTULO IV – QUE OS IRMÃOS NÃO RECEBAM DINHEIRO

“Ordeno firmemente a todos os irmãos que de modo algum recebam dinheiro ou moedas (pecúnias), nem por si nem por pessoa intermediária. No entanto, só os ministros e custódios exerçam diligente cuidado, através de amigos espirituais, para com as necessidades dos enfermos e para vestir os demais irmãos de acordo com os lugares, tempos e regiões frias, como virem que seja conveniente à necessidade, salvo sempre que, como foi dito, não recebam moedas ou dinheiro.”

“A proibição da Regra parte do mandato de Jesus, que disse: ‘Não levem ouro, nem prata, nem cobre em suas bolsas’ (Mt 10,9). O termo “cobre” é a tradução de pecúnia do texto latino, que por sua vez é a tradução do grego, cujo significado é ‘moedas de cobre’. Segundo o texto evangélico, Cristo proibiu a seus discípulos o uso de qualquer classe de moedas de ouro, prata ou cobre para suas expedições apostólicas. O texto da Regra apresenta uma variante em relação a Mateus. No lugar de ‘ouro e prata’, o legislador empregou o vocábulo ‘dinheiro’ e conservou a palavra ‘pecúnia’” (Cf. URIBE, 2006, p. 165-166).

“As camadas mais baixas da sociedade no tempo de Francisco não usavam dinheiro, pois seu trabalho era retribuído em espécies e se efetuava a troca de produtos, mas simultaneamente se estavam operando fortes transformações socioeconômicas, se estavam dando os primeiros passos da chamada ‘revolução financeira’. A economia começou a se basear em moeda contante e não na troca de produtos; o dinheiro começou a ter, portanto, uma importância decisiva como instrumento de poder: quem o possuía tinha a seu alcance todas as possibilidades, gozava de prestígio e influência, tinha segurança” (URIBE, 2006, p. 167).

Quem então possuísse dinheiro tinha também poder e prestígio, e dispunha de todas as possibilidades. Dado, porém, que a vida dos frades menores devia decorrer sem garantias materiais e na humildade, proibiu Francisco o uso do dinheiro a seus irmãos, não admitindo nenhuma ressalva, e atalhando todos os subterfúgios por meio de uma proibição bem formulada. Sua intenção não era deixar os irmãos à mercê da miséria. Por isso cabe aos ministros e custódios cuidarem diligentemente dos doentes e dos irmãos que precisassem de roupas… para isso não coloca cláusulas.

“A proibição de dinheiro para Francisco tolera algumas exceções. O seu uso pode ser admitido em caso de manifesta necessidade, detalhada pelo cuidado dos frades doentes ou para vir em socorro aos itinerantes em lugares e condições climáticas particularmente rígidas. Somente diante do cuidado do doente e a universalidade da itinerância, ele dá valor ao dinheiro. Diferente disso não teria alguma utilidade, a não ser aquelas atribuídas pelo mercado. Para Francisco, porém, não pode ser o mercado a fixar o preço dos bens de consumo e das outras coisas necessárias a uma vida digna. O valor das coisas pode ser estabelecido apenas pela necessidade, ou seja, das coisas do corpo, que podem até mesmo adoecer, ou da urgência do anúncio evangélico nos lugares castigados pelo frio. São as necessidades físicas do corpo doente e os desafios geográficos e climáticos, ambientais impostos à evangelização a ditar a utilidade do dinheiro. É, portanto, a natureza, em última análise, e não o mercado a atribuir as coisas o seu autêntico valor” (BUFFON, p. 89-90).

Diante dessa situação, o próprio Francisco admitia a impossibilidade de regulamentar de modo uniforme na Ordem as utilidades necessárias para a vida. Compete aos ministros (superiores) cuidar paternalmente dos irmãos, e prevê a seu juiz o que convier melhor à necessidade. O cuidado pelas necessidades dos irmãos deverá prevalecer sobre qualquer objeção proveniente da proibição do dinheiro.

Na Regra de 1221, quando se fala de necessidade, não pode entender-se a construção de casas ou habitações, ou simples lugares de abrigo, mas uma itinerância que goze da hospitalidade em casas dos outros segundo o modelo de Jesus, hóspede e peregrino, exemplo do frade menor: “E de modo algum recebam os irmãos nem façam receber, nem peçam, nem façam pedir dinheiro como esmola, nem moedas em favor de quaisquer casas ou lugares; nem andem com alguma pessoa que pede dinheiro ou moedas em favor de tais lugares” (Cf. RnB 8,8). (Cf. BUFFON, p. 90-91).

A figura dos amigos espirituais

Para as necessidades dos doentes e para vestir os outros irmãos, Francisco coloca no texto desse capítulo da Regra uma exceção à norma.

Quando os superiores não conseguem prover a tais necessidades por prestação de serviços ou pela mendicância como era realmente costume na Ordem, desde o começo, podem recorrer aos assim chamados “amigos espirituais”. São eles homens animados e inspirados pelo mesmo espírito que os frades menores, de sorte que não fariam ou permitiriam nada que fosse contrário à nossa vida e à nossa regra.

Essa figura dos chamados amigos espirituais não se encontra nas fontes hagiográficas do século XIII. Diversos grupos de Penitentes, como também os Cátaros e os Valdenses, tinham pessoas simpatizantes, chamadas de “amigos”, que socorriam os pregadores ambulantes em suas necessidades materiais. No caso dos irmãos menores, esses chamados “amigos espirituais” poderiam ser alguns membros da Terceira Ordem da Penitência. Esse argumento poderia ser confirmado pelo fato de não ser mencionada, na Regra de 1221, essa figura intitulada de “amigos espirituais”, pois, todavia, naquele momento apenas estava conformando juridicamente a dita irmandade, argumentação comungada pelo estudioso de franciscanismo Caetano Esser (Cf. URIBE, 2006, p. 169).

Bibliografia:

URIBE, Fernando. La regla de San Francisco. Letra y espíritu. Murcia, Editorial Espigas: 2006.

BUFFON, Giuseppe. La Regola di Francesco spiegata ai semplici. Milano, TS Edizioni: 2023.

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