“Cristãos no meio rural: formação cristã para líderes” – 50 anos

“Cristãos no meio rural: formação cristã para líderes” – 50 anos

Em 2023, celebramos os 50 anos de publicação do livro “Cristãos no meio rural: formação cristã para líderes” de autoria do Franciscano, Frei Bernardino Leers, publicado pela Editora Vozes, em 1973.

Frei Oton da Silva Araújo Júnior, ofm

Em 2023, celebramos os 50 anos de publicação do livro “Cristãos no meio rural: formação cristã para líderes” de autoria do Franciscano, Frei Bernardino Leers, publicado pela Editora Vozes, em 1973. O livro foi impresso num formato de 18 cm de altura e consta de um pouco mais de 300 páginas.

O teólogo moralista Bernardino Leers, de origem holandesa, chegara ao Brasil em 1952 e passara a dedicar-se às aulas de Moral no seminário maior de Teologia dos Frades Franciscanos, em Divinópolis (MG), e à assistência pastoral rural das comunidades da região.

Dessa forma, a publicação a que nos referimos, se deu após um período de praticamente duas décadas de contato com a realidade do interior de Minas Gerais e pretendeu ser uma espécie de catequese para adultos para a população rural. O teólogo estabeleceu um verdadeiro diálogo ao apresentar as verdades de fé e uma panorâmica da Igreja naquele contexto, bem como se dispôs a uma escuta atenta das questões fundamentais da vida daquela gente.

Nos anos seguintes, Frei Bernardino escreverá muitos outros livros e artigos, conjugando este diálogo da Teologia com o Mundo rural, o que lhe fará ser reconhecido como um dos principais nomes da renovação da Teologia Moral no Brasil (cf. ARAÚJO Jr., 2023).

Na apresentação do livro, Frei Bernardino disse de suas motivações em atender o pedido de alguns bispos para elaborar o material: “Seu texto é o resultado provisório duma experiência pastoral de vários anos na zona rural de Divinópolis (Minas Gerais) e resume as ideias elaboradas nos cadernos catequéticos, publicados no mesmo lugar. O grato contato com o povo do Estado do Pará e o convite gentil de seus bispos tem sido o estímulo definitivo para colocar estas ideias no papel e escrever o livro” (p.7).

O livro foi dividido em quatro partes: 1. O mundo rural; 2. Jesus Cristo, nosso libertador; 3. Nós, o povo de Deus; 4. Ação e vida. Por esse itinerário, podemos perceber a influência do método indutivo (ver, julgar e agir) adotado pelo Concílio Vaticano II e pela Conferência de Medellín, ocorrida em 1968: inicia-se por um entendimento da realidade, reflete-se sobre a pessoa de Jesus e seu projeto (esta é a maior parte de toda a publicação, perfazendo basicamente toda a trajetória de Jesus, desde seu nascimento até a ressurreição).

O terceiro capítulo utiliza a expressão “nós, povo de Deus” que é uma referência direta a perspectiva eclesiológica do Concílio Vaticano II (Lumen Gentium, capítulo 2). As abordagens, neste caso, são “a história do Espírito Santo; o projeto da comunidade; povo de Deus neste mundo e a Igreja peregrina” situando, dessa forma, a presença atuante do Espírito de Deus no seio da comunidade e na animação do testemunho da Igreja no mundo.

O quarto e último capítulo tira as implicações concretas da vivência cristã na sociedade. Neste tópico, o teólogo desenvolve: os cooperadores de Deus, casamento e família, desenvolvimento e libertação, vida pública e democracia e o futuro que esperamos.

Solta os olhos o uso corriqueiro da palavra “libertação”, que se dá, evidentemente, no contexto da Conferência do CELAM (1968), de onde proveio a Teologia da Libertação e as Comunidades Eclesiais de Base.

Frei Bernardino se mostra convencido de que “um texto não é mais do que uma teoria. Precisa ser assumido e adaptado à vida concreta da pessoa para tornar-se vivência real e animar a convivência com os outros” (p.8).

Como o título propõe, o público alvo da reflexão são as lideranças leigas, às quais caberão traduzir as propostas para uma linguagem e vivência mais aterrissadas na realidade das pessoas concretas: “Estudando com calma o texto e meditando trecho por trecho, o líder entenderá melhor a própria palavra libertadora de Deus e preparará sua comunidade de maneira mais adequada para o encontro com o mistério de Nosso Senhor Jesus Cristo na eucaristia” (p.8).

Alguns trechos do livro

Para exemplificar um pouco do estilo e das temáticas que Frei Bernardino apresenta, vamos citar alguns de seus trechos: “o homem não é como gado que não sabe, se é levado para o pasto ou para o matadouro. É uma criatura consciente e responsável. Quando criança, pensa como criança, age como criança brinca como criança. Mas homem adulto, pensa como homem adulto, usando a cabeça e medindo o coração. Homem adulto, vê as coisas e as resolve, não como uma mula cega que trota no moinho, mas como um homem que, com a graça de Deus, caminha de olhos abertos, toma a vida a sério e segue para frente, conforme a cabeça dita e o coração afirma. Foi para isso que Deus criou o homem” (p. 14).

Para indicar as mudanças que ocorriam na zona rural no início dos anos 70, Frei Bernardino dá alguns exemplos que, aos olhos atuais, soam como anedotas: “do mascate que passa, ou na loja, compram-se roupas estampadas, sapatos finos e muito artigo novo que nossos pais não conheciam. O rádio a pilha que nos comunica com o mundo que nunca vimos ou visitamos. A força elétrica acende as lâmpadas e movimenta qualquer máquina. Onde até agora só andava a passo lento o carro de boi e ouvia-se apenas o trote do cavalo, carros, caminhões, ônibus correm pelas estradas levantando poeira. De vez em quando, surge um avião voando como um pássaro, deixando apenas o rastro do barulho. O correio leva carta, telegrama para onde a gente quiser, para um parente em São Paulo ou um primo na Europa. Tanta coisa está mudando. Muita coisa nova entra e se firma em nossa vida rural” (p. 16).

Para dizer da responsabilidade das pessoas perante os problemas do mundo, Frei Bernardino chama a atenção para a inércia a que várias mentalidades estão confinadas: “não é por nada que o novo ato de contrição que rezamos na missa diz: ‘eu me confesso a Deus todo-poderoso, porque pequei por atos e omissões’. Omissão, sim, há muita gente neste mundo de hoje. Muita gente na zona rural se queixa, mas nada fazem diante da pobreza, do atraso, da ignorância, da injustiça, da exploração que tantos irmãos nossos estão sofrendo ainda. Pela força de Deus que o criou, o homem é um ser responsável perante a sociedade de que faz parte e perante o mundo humano que ele mesmo ajuda a criar” (p. 21).

No segundo capítulo, ao apresentar a pessoa e o projeto de Jesus Cristo, Frei Bernardino recorre a várias parábolas, recontando-as, porém, com linguagem atualizada. “Jesus é como a luz elétrica. Os cristãos são as lâmpadas. Se são boas, acendem e espalham a luz de Cristo. Se não funcionam, tudo fica nas trevas” (p.97). Ao se referir ao capítulo 25 de Mateus, disse que Jesus “contou dum homem que foi viajar e confiou seu dinheiro aos seus empregados. Deu a um vinte mil cruzeiros, a outros dez mil…” (p. 97).

Frei Bernardino apresenta Jesus como alguém próximo dos sofredores: “O povo simples com suas doenças, ignorâncias, fome, pode contar com ele. Na hora de sua morte ainda atende a um ladrão crucificado ao seu lado. Com a mesma sinceridade, Jesus encontra e enfrenta os ricos e poderosos. Reconhece direitos, mas não esconde defeitos e justiça, abuso de poder. Fala com franqueza e dá nome aos erros humanos. Tira as máscaras e descobre os lobos que andam bancando ovelhas inocentes” (p. 107).

O terceiro capítulo perfaz o itinerário bíblico, com várias citações, com as quais o autor demonstra a ação do Espírito Santo ao longo da história, desde o Antigo Testamento, até guiar a Igreja após a morte e ressurreição de Jesus.

 O último capítulo tem como temática “vida e ação”. Um dos temas aqui apresentados é sobre casamento e família. Seguindo sua linha de reflexão, convida as famílias a perceberem as mudanças que vêm ocorrendo no mundo e a necessidade de darem testemunho da fé. Acompanhemos todo o argumento: “As muitas mudanças que passam pela zona rural não param diante da porta de nossos lares. Penetram com rapidez a casa adentro. Também na vida de casados, na vida familiar, há muita novidade de que nossos avós nem sonharam. Observe uma vez seu próprio ambiente. A convivência entre rapazes e moças não está mudando muito? Os filhos querem seguir já cedo seu próprio caminho e imitar a moda da cidade. Como está o namoro no campo? Os rapazes têm terra e emprego e ganham bastante para casar e manter uma família? O que se pensa em seu meio da mulher? Ela tem os mesmos direitos do homem? É respeitada como ele? E a prostituição? Em sua região, o povo costuma casar na igreja e no cartório? Como vivem os casais? Combinam bem? São fiéis um ao outro? Fala-se muito de divórcio. A gente escuta tanta coisa do povo da cidade. Vê muita coisa diferente sobre sexo, casamento, filhos, no cinema e nas revistas ilustradas. Os casais que você conhece têm muitos filhos? O que acham da limitação de filhos? Eles têm casa boa, boa alimentação, roupa, escola para educar bem os filhos? A escola, as autoridades colaboram com pais de família? Os pais colaboram com as professoras? Olhe bem este mundo de casais, famílias, pais, filhos. Ele é nosso mundo. É o mundo humano em que devemos dar, pela nossa vida, o testemunho do Senhor Jesus Cristo” (p. 241-242).

Ao tratar da dignidade humana disse: “nosso trabalho, nosso serviço, são como peças de uma máquina sempre maior e mais complicada. Mas tal desenvolvimento não salvará o homem, se este não criar maior igualdade para todos e maior participação de todos na comunidade política” (p. 283).

Outro tema abordado é “em procura duma democracia”. Lembremo-nos, no entanto, que há quase uma década, o Brasil vivia sob o Regime Militar: “Democracia política não se cria por decreto. Cresce de baixo para cima, como a árvore. A seiva vem das raízes, forma o tronco, depois os ramos e a copa. A democracia política começa na base dos cidadãos e de sua maturidade humana. Desde cedo, ainda no seio da família, a pessoa deve ser educada para a liberdade. Que aprenda a participar ativamente na vida da casa. A escola tem de ser mais um instrumento para despertar a consciência e levar o homem à ação responsável em sua comunidade. Também o ambiente de trabalho ajudará. Infelizmente em muita fazenda e empresa, o patrão manda e os outros têm de calar a boca. Por que estes outros não podem dar seu palpite e ajudar com seus conselhos? Por que não participam na própria direção? Muito importante é a própria organização da comunidade local em que o homem vive. Se cada um aprende a formar sua opinião, respeitar a opinião dos outros e colaborar livremente no progresso do lugar, um bom passo está feito em direção à democracia. Desta maneira, a própria comunidade se torna a melhor escola democrática” (p.292).

O texto defende ainda a reforma agrária, mas com a justa participação do povo rural: “Reforma agrária verdadeira se faz em primeiro lugar pela participação ativa e eficiente dos próprios lavradores. O Papa João XXIII, ele mesmo filho duma família rural, é taxativo: os lavradores mesmos devem ser os promotores do progresso humano da zona rural. Se o próprio povo rural não desperta e colabora em sua libertação, fica dependente para sempre e nunca mostrará sua dignidade. Nesta libertação, ninguém deve bancar o Papai Noel, dando presentes de graça. Não adianta construir escolas, abrir estradas, instalar um posto médico, fazer campanhas, sem que o próprio homem rural seja reconhecido e de sua colaboração. Que o povo mesmo participe, seja ouvido, motivado e ajude a construir, fazendo o que pode nos melhoramentos das comunidades rurais. Sem tal colaboração, a zona rural é um poço sem fundo. E o povo corre o risco de ver quebrado seu jugo de madeira, mas ficar preso por outro de ferro (Jer 28,13)” (p. 295).

Em suas últimas páginas, “Cristãos no meio rural” aborda temas ligados à escatologia, ressaltando a esperança cristã e dizendo dos ritos sacramentais nos momentos derradeiros da vida: “Este futuro já começou entre nós. Pois o primeiro, Cristo Jesus, venceu a morte e vive agora na glória. Por ele, nossa Senhora e os santos conhecem já a verdadeira felicidade. Contudo, nós continuamos ainda nossa romaria num mundo que sofre e faz sofrer por causa dos males que nos afligem. Estamos em caminho, trabalhando como servidores fiéis, para criar já agora a verdadeira comunidade dos homens e desenvolver as forças do mundo ao nosso serviço. Se algo foi feito para a glória de Deus e dos homens, muito mais temos de fazer. Continuamos a viagem a passo firme, confiantes na palavra que Deus nos comunica. Como programa de ação, o apóstolo nos diz: Vigiai, permanecei firmes na fé, sede homens, sede fortes! (1Cor 16,13)” (p.318).

Em sua última página, há uma profissão de fé: “Senhor, nosso Deus, cremos neste mundo que reflete a força de vossa bondade, mas sofre e espera até hoje a sua plena libertação.

Cremos nos homens que vós colocastes à frente deste mundo, mas que precisam libertar-se de seu próprio pecado, libertando seus irmãos.

Cremos em Jesus Cristo, vosso filho, o primeiro homem que vos encontrou de verdade pela sua vida, morte e ressurreição e tornou-se para nós a bela esperança da liberdade que queremos alcançar.

Cremos na Igreja, vosso povo, com que caminhamos pela vida, e que o vosso Espírito conduz à herança dos filhos de Deus.

Cremos em vós, Pai de nosso senhor Jesus Cristo, que nos inspirais o respeito e o amor a todos os homens e às coisas deste mundo e nos dais a energia de construirmos juntos uma nova terra e um novo céu.

Nós vos agradecemos, Pai, pela fé que nos ilumina o caminho, pela esperança que nos faz trabalhar na luz, pelo amor que nos reúne na estrada e nos leva à comunhão.

Cremos, Senhor, mas ajudai a fraqueza de nossa fé.

Esperamos a vinda de vosso Filho Jesus; confirmai-nos nesta esperança.

Queremos amar. Acendei na pobreza de nosso coração o fogo de vosso amor.

Assim criaremos mais justiça, maior igualdade, a verdadeira paz entre nós.

Pai nosso, escutai a nossa oração e comunicai-nos a vossa força libertadora” (p. 319).

Que impressões nos causam o livro “Cristãos no meio rural: formação cristã para líderes” (Vozes, 1973)?

Este livro é um bom exemplo das mudanças da sociedade e da Igreja no início dos anos 70. Passar de uma fé fatalista e motivar as pessoas ao empenho pela mudança da sociedade significou um grande desafio para aquele contexto.

O progresso, – representado aqui pela força elétrica, automóveis, meio de comunicação e tantos outros exemplos – hipnotizava as pessoas de modo a depositarem toda a sua esperança nesses novos tempos. A fé, por sua vez, corria o risco de se desidratar, uma vez que não era mais capaz de responder às novas questões do mundo. Ao propor uma formação cristã para líderes, Frei Bernardino tenta fazer com que as pessoas do campo reflitam sobre estas e outras questões.

O texto tem uma rica Cristologia, ao apresentar a figura de Jesus Cristo como alguém muito próximo do contexto das pessoas, em suas alegrias e tristezas, abrindo a esperança cristã na Vida Eterna. É de se ressaltar, ainda, que por se tratar basicamente de uma catequese para adultos, não fica insistindo em dogmas e leis da Igreja, mas foca o argumento na pessoa de Jesus, o qual convida a todos para a inserção no mundo, em busca das transformações sociais.

Como dissemos de início, fica explícito o método ver, julgar e agir que caracterizou muito fortemente a Igreja dos anos 70.

Revisitar este texto 50 anos depois é um bom exercício para compreender a atuação da Igreja naqueles idos, e perceber o empenho em conjugar as mudanças sociais com o alicerce da fé. Talvez este desafio continue ainda hoje, para os discípulos do Senhor do século XXI.

Para aprofundar na contribuição de Frei Bernardino:

ARAÚJO Jr., Oton da Silva, Teologia Moral Dialogante: herança renovadora de Bernardino Leers, Santuário, 2023. 

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