Uma novela para o nosso tempo: Rute e a Campanha da Fraternidade 2024

Uma novela para o nosso tempo: Rute e a Campanha da Fraternidade 2024

Essa fina narrativa bíblica espelha a vida como ela é, descreve com delicadeza e profundidade grandes desafios humanos

Frei Vitor Vinicios da Silva[1]

A novela de Rute é um fino exemplo da amizade social, temos uma narração que nos aponta uma relação de cuidado entre duas mulheres. Dado como um conto ou novela para alguns autores (SOARES, 2021, p.43), não busca nos dizer o que aconteceu, mas o que acontece na vida. Em simples palavras, Rute é uma das mulheres moabitas que se casa com o filho de uma família judaica que se instala no território do seu povo motivado pela fuga da fome. Entretanto, a morte é a convidada mais indesejada que leva não apenas o seu sogro, mas também seu marido e cunhado. Assim sendo, em uma realidade em que a figura masculina é a responsável pela família, já sabemos o que aguarda essas mulheres.

Além desse caos, sua sogra Noemi pede o retorno de suas duas noras, Orfa e Rute, as suas famílias de origem sendo que Orfa aceita e Rute não, permanecendo, assim, ao lado de sua sogra e, ainda mais, aceitando retornar para a terra de sua nova companheira. Nesse sentido, existem vários componentes que complicam a vida de Rute. Primeiro que é uma mulher estrangeira, uma nochri (umas das três categorias de compreensão de estrangeiro no mundo semita – zar, nochri e ger) que é vista como uma pessoa “[…] potencialmente perigosa que deveria ser excluída da comunidade social israelita sempre que possível e que estava fora da comunidade cúltica de YAHWEH” (SOARES, 2021, p.47). Em outras palavras, poderia ser expulsa a qualquer momento. Entretanto, essa mulher assume a responsabilidade de cuidar de uma mulher israelita deixando seu próprio povo e a tradição em prol da amizade.

O conto segue narrando o desfecho desse caos ocorrido na vida dessas duas mulheres vulneráveis e pobres que encontrarão um caminho feliz. É uma narrativa repleta de elementos que nos auxiliam a pensar na vida contemporânea, podemos pensar em: migração, feminismo, sororidade, amizade, identidade, nacionalismo, alimentação e outros tantos temas. Embora seja vasto o campo de reflexão, relacionaremos com a meditação proposta pela CF 2024 que assume o tema “Fraternidade e Amizade Social” e o lema “Vós sois irmãos e irmãs” (Mt 23,8).

A narrativa dialoga com o sentimento/valor de amizade social que aqui podemos definir, a maneira do Papa Francisco, como “amor que ultrapassa as barreiras geográficas e do espaço” (FT, n.1) ou “viver livre de todo desejo de domínio sobre os outros” (FT, n.4). Já o conceito de fraternidade é o resultado de relações abertas que tem como base o amor e a amizade. Assim sendo, a história dessa mulher chamada Rute nos aponta uma quebra da noção exclusivista de Israel, ou seja, a ideia de um nacionalismo excludente ou a ideia de um purista (puro/impuro) que é rompida e pode ser ampliada em outras perspectivas como, por exemplo, nas relações humanas. Essa ampliação vai de encontro com as relações exclusivistas que talvez nutramos no cotidiano, relacionamentos fechados em grupos, gestões seletivas ou parciais, criação de pequenos guetos que vão se formando em dimensões pessoais, sociais e políticas e, com isso, o surgimento da ideia de expulsão do outro (estrangeiro) de nossas vidas e sociedade. Assim, a narrativa nos ensina que as relações cada vez mais em ‘bolhas’ podem nos levar ao autoextermínio e, na contramão, nos aponta que a tenda deve ser cada vez mais ampliada.

Essa mensagem dada nas entrelinhas da narrativa nos leva a ideia de fronteiras rompidas: étnica (moabita/judeu), social (senhor/serva), religiosa (união com estrangeiro) e de gênero (patriarcal/ mulher assumindo o mesmo direito). Embora o estrangeiro daquele e do nosso tempo ainda é visto como ameaça no imaginário coletivo, precisamos assumir essa atitude de ampliação de nossas próprias tendas, o outro é o único caminho pedagógico que pode nos ensinar e desafiar-nos a sermos melhores do que ontem. Além disso, essa perda do outro como mistério, como dor e como inferno nos leva a náusea do igual, sem o outro não amadurecemos e não nos tornamos mais fortes. Um belo exemplo para nossa compreensão é dado pelo filósofo Byung-Chul Han que afirma que a “[…] negatividade do outro é responsável pela infecção que penetra no mesmo e leva a formação de anticorpos. O infarto, em contrapartida vem do excesso do igual, da obesidade do sistema. Ele não é infeccioso, mas adiposo. Não se formam anticorpos contra a gordura (2022, p.9). Com isso, precisamos do outro para criarmos anticorpos e, consequentemente, combatermos a doença da insensibilidade, da intolerância e do egoísmo cada vez mais exacerbado.

Essa fina narrativa bíblica espelha a vida como ela é, descreve com delicadeza e profundidade grandes desafios humanos. Aqui, temos um antagonismo do nosso cotidiano de desumanização que “expulsa o outro” e afirma a ditadura do igual. É preciso combatermos a política individual e social dos ‘guetos’, rompermos as fronteiras e encontramo-nos com “os nossos” que nos desafia. Ademais, Segundo Boff, “a fraternidade sem fronteiras e o amor social são fundamentais se quisermos reinventarmos uma forma amigável reverente e cuidadosa de nos relacionarmos com a terra e a natureza. Daí nascerá uma civilização biocentrada, como afirma a Fratelli Tutti fundada numa ‘política da ternura e da gentileza’ (BOFF, 2023, p.110). Enfim, a personagem Rute é o modelo de uma cultura da solidariedade que precisa ser resgatada em nosso tempo como um caminho de salvação da nossa espécie.

Referências

BOFF, Leonardo. Terra Madura: uma teologia da vida. São Paulo: Planeta do Brasil, 2023.

CNBB. Campanha da Fraternidade. Tema: Fraternidade e amizade social. Lema: Vós sois todos irmãos e irmãs. Texto-base. Brasília, 2024.

FRANCISCO, Papa. Fratelli Tutti: sobre a fraternidade e a amizade social. São Paulo: Paulus, 2020.

HAN, Byung-Chul. A expulsão do outro: sociedade, percepção e comunicação hoje. Petrópolis: Vozes, 2022.

SOARES, A. Elizangela. A Moabita e a metáfora do “outro”: Rute como modelo cultural de solidariedade. In: KAEFER, J. Ademar; SANTOS, A. S. (Org.). Novelas Bíblicas: sabedoria da Bíblia para os dias de hoje. São Paulo: Paulus, 2021.


[1] Graduado em Filosofia pelo Instituto Santo Tomás de Aquino, graduando em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia e Especialista em Ensino Religioso pelo Instituto Pedagógico de Minas Gerais, IPEMIG.

Foto: https://www.imagensbiblicasgratis.org

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