Que este Natal do Senhor seja pleno de esperança, de saúde, de solidariedade e de amor.
“Preste atenção no princípio do espelho: a pobreza daquele que, envolto em panos, foi posto no presépio! (cf. Lc 2,12). Admirável humildade, estupenda pobreza! O Rei dos anjos, o Senhor do céu e da terra (cf. Mt 11,25) repousa numa manjedoura. No meio do espelho, considere a humildade, ou pelo menos a bem-aventurada pobreza, as fadigas sem conta e as penas que suportou pela redenção do gênero humano” (IV In).
“O Senhor vos conceda a paz!”
O fragmento retirado da 4ª carta de Clara de Assis dirigida a sua companheira Inês, do Mosteiro da Boemia, é impresso por uma forte espiritualidade kenótica, que marcou profundamente os primórdios do movimento franciscano, que tanto Francisco como Clara sempre desejaram abraçar. Os dois tinham como ponto de inspiração o Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo. Sabemos, pela tradição franciscana, que o próprio Francisco de Assis quis celebrar o Natal do Senhor e ali experimentar os apuros que o Menino passou, quando nasceu pobre numa manjedoura, em meio a animais, numa estrebaria. A Vida do bem-aventurado Francisco, escrita por Tomás de Celano, assim descreve o desejo de Francisco:
“A mais sublime vontade, o principal desejo e supremo propósito dele era observar em tudo e por tudo o santo Evangelho, seguir perfeitamente a doutrina e imitar e seguir os passos de Nosso Senhor Jesus Cristo com toda a vigilância, com todo o empenho, com todo o desejo da mente e com todo o fervor do coração. Recordava-se em assídua meditação das palavras, e com penetrante consideração rememorava as obras dele. Principalmente, a humildade da encarnação e a caridade da paixão de tal modo ocupavam a sua memória que mal queria pensar outra coisa. – Deve-se, por isso, recordar e cultivar em reverente memória o que ele fez no dia do Natal de Nosso Senhor Jesus Cristo […]” (1Cel, 84, 1-4).
Tomás de Celano descreve como se fosse numa tela pintada a ideia e o desejo do Santo de celebrar o Natal numa gruta na aldeia de Greccio. Ali tudo convergia para transportar a atenção do leitor a essa cena inspirada nos Evangelhos, marcada pela singeleza e muito cara ao Poverello de Assis. Vejamos a descrição de Celano:
“Pois quero celebrar a memória daquele menino que nasceu em Belém (Mt 2,1.2) e ver de algum modo com os olhos corporais os apuros e necessidades da infância dele, como foi reclinado no presépio (cf. Lc 2,7) e como, estando presentes o boi e o burro, foi colocado sobre o feno” (1Cel, 84, 8).
O texto coloca em realce a assembleia convocada no espaço litúrgico da celebração, ressalta a disposição de ânimos, traz nas mãos velas para iluminar o espaço…
“E aproximou-se o dia da alegria, chegou o tempo (cf. Tb 13, 10; Ct 2,12) da exultação. Os irmãos foram chamados de muitos lugares; homens e mulheres daquela terra, com ânimos exultantes, preparam, segundo suas possibilidades, velas e tochas para iluminar a noite que como astro cintilante iluminou todos os dias e os anos” (1Cel, 85, 1-2).
Francisco se emociona ao deparar-se com o espaço litúrgico organizado. Celano compara a aldeia de Greccio a uma nova Belém.
“Veio finalmente o santo de Deus e, encontrando tudo preparado, viu e alegrou-se (cf. Jo 8,56). E, de fato, prepara-se o presépio, traz-se o feno, são conduzidos o boi e o burro. Ali se honra a simplicidade, se exalta a pobreza, se elogia a humildade; e de Greccio se fez como que uma nova Belém” (1Cel, 85, 3-5).
Os frades animam com cantos apropriados aquele momento muito caro a Francisco, cujo ápice é a celebração da eucaristia.
“Os irmãos cantam, rendendo os devidos louvores ao Senhor, e toda a noite dança de júbilo. O santo de Deus (cf. Mt 1,24) está de pé diante do presépio, cheio de suspiros, contrito de piedade e transbordante de admirável alegria. Celebra-se a solenidade da missa sobre o presépio, e o sacerdote frui nova consolação” (1Cel 85, 9-11).
Segundo o texto de Celano, Francisco como diácono canta o Evangelho e prega ao povo sobre o natal do Senhor.
“O santo de Deus veste-se com os ornamentos de levita, porque era levita, e com voz sonora canta o Evangelho. E a voz dele, de fato, era uma voz forte, voz doce (cf. Ct 2,14), voz clara e voz sonora, a convidar todos aos mais altos prêmios. Prega em seguida ao povo presente e profere coisas melífluas sobre o nascimento do Rei pobre e sobre Belém, a pequena cidade” (1Cel 86, 1-3).
Francisco com a sua celebração conduz os homens ao encontro com o Deus encarnado que tinha sido esquecido nos corações de muitos:
“Via, pois, deitado no presépio um menino exânime, via que o santo de Deus se aproximava dele e despertava o mesmo menino como que de um sono profundo. E esta visão era muito apropriada, pois que o menino Jesus tinha sido relegado ao esquecimento (cf. Sl 30,13) nos corações de muitos, mas neles ele ressuscitou, agindo a sua graça por meio de seu servo São Francisco, e ficou impresso na diligente memória [deles]” (1Cel 86, 7-8).
O texto ainda, quase “en passant”, fala de “sinais prodigiosos” (milagres) após a celebração ocorrida na aldeia de Greccio, o feno colocado no presépio foi guardado e curava os animais de suas doenças e mulheres em dificuldades no parto…
Presépio e eucaristia, duas facetas da kenósis, muito caras à tradição e espiritualidade franciscana:
“O lugar do presépio foi consagrado como templo ao Senhor (1Rs 8,63), e em honra do beatíssimo pai São Francisco construiu-se sobre o presépio um altar, e dedicou-se uma igreja, para que, onde uma vez os animais comeram foragem de feno (cf. Dn 5,21), aí doravante os homens comam, para a salvação da alma e do corpo, a carne do cordeiro imaculado […]” (1Cel 87, 4-5).
Retornando ao fragmento inicial, retirado da carta de Clara de Assis, ela pede a Inês que contemple no princípio do espelho a pobreza do menino envolto em panos, que, colocado no presépio, insiste numa pobreza concreta, palpável; aquele que é Rei repousa numa manjedoura, local onde os animais comiam. Depois continua insistindo para considerar, agora no meio do espelho, a humildade, as dificuldades que teve que suportar pelo gênero humano. O conselho de Clara não é algo da boca para fora, mas nasce de uma experiência de alguém que vocacionalmente fez uma “virada de 360 graus” na sua vida familiar. Deixou para trás, na sua fuga da casa paterna, uma vida cômoda, sem as agruras da pobreza, para abraçar uma proposta inusitada para uma mulher de sua época e condição, ao optar, por exemplo, por viver em São Damião, cujo paradoxo de pobreza e humildade foi bastante radical. Recordo aqui o pedido insistente de Clara ao Papa de um privilégio de pobreza, cuja referência é sempre o seguimento do Cristo pobre.
Clara recomenda a Inês da Boemia a não desviar o seu olhar, e sim focar naquele que se tornou modelo da nossa vida de “irmãs menores”, cuja pobreza deveria ser um ponto de referência. É interessante recordar que, assim como Clara, que vinha de uma família senhoril, Inês provinha de uma família real; optando por uma vida de monja, deixou para trás título e riquezas e abraçou a seguimento de Cristo, tendo por inspiração a proposta de vida levada a cabo pelo pobre mosteiro de São Damião.
“Particularmente, desde sua origem franciscana, o Presépio é um convite a ‘sentir’, a ‘tocar’ a pobreza que escolheu, para si mesmo, o Filho de Deus na sua encarnação, tornando-se assim, implicitamente, um apelo para seguirmos pelo caminho da humildade, da pobreza, do despojamento, que parte da manjedoura de Belém e leva até a Cruz; e um apelo ainda a encontrá-lo e servi-lo, com misericórdia, nos irmãos e irmãs mais necessitados” (cf. Mt,31-46) (Carta Apostólica Admirabile Signum, de Papa Francisco, n.03, p.7-8).
Partindo do conselho de Clara a Inês e da celebração de Francisco na aldeia de Greccio, gostaria de convidar a cada irmão, ao findar do nosso ano civil, para celebrarmos mais um Natal do Senhor, pensando no nosso contexto de pandemia, que ainda nos assombra diante de novas variantes. De modo especial o nosso olhar se dirige às famílias das pessoas que perderam seus entes queridos por causa da covid-19, desempregados e aqueles que foram empurrados pelo sistema para as ruas das grandes cidades.
Que este Natal do Senhor seja pleno de esperança, de saúde, de solidariedade e de amor. O Capítulo Provincial da PSC, que será celebrado em janeiro de 2022, desejo a cada confrade que seja um tempo forte de convivência, revigoramento, planejamento e de muita esperança. Que o Senhor os abençoe e os proteja!
Fraternalmente,
Frei Hilton Farias de Souza, OFM
Ministro Provincial
Se você gostou desta mensagem, aproveite para conferir a mensagem do Ministro Geral para o Natal.
Imagem: Il presepe di Grecio – Legenda Maior di S. Boaventura – Miniatura dal Codice Pergamenaceo del 1457, Roma, Museo Franciscano, inv. nr. 1266